O spoken word não é uma forma de arte muito conhecida nem muito executada por cá. Aires Ferreira é um dos nomes mais importantes do movimento e, em formato digital, editou recentemente Ruína, um álbum onde musica os seus escritos. Via Nocturna quis conhecer esta personagem em ascensão no movimento cultural nacional e contactou o artista que entre explicações da sua arte, referências aos discos e projectos em que participa e uma abordagem aos vinhos de Moimenta da Beira, nos confidenciou o nome e a estrutura do seu próximo trabalho.
Antes de mais podes explicar em que consiste o spoken word?
É uma forma de expressão artística ambígua quanto baste, no sentido de ser difícil de catalogar já que existem muitas formas de o fazer. Mas de uma forma suficientemente universal, os textos ou poemas são falados, ao invés de cantados. No meu caso, existe música mas a ênfase é sempre no que é dito. Encontras por isso, spoken word em coisas tão distintas como William S. Burroughs, GG Alin, Lydia Lunch, Eminem, entre muitos outros. Pessoalmente, é essa extrema flexibilidade que torna o Spoken Word algo de tão especial.
Sendo um dos primeiros portugueses a praticar esta modalidade, foi ou tem sido difícil a tua aceitação pelo público?
Bom, sempre existiram excelentes intérpretes de textos ou poemas em Portugal. Simplesmente, fui dos primeiros a chamar-lhe Spoken Word. Mas não senti dificuldades nesse sentido. Pelo menos, não mais do que qualquer outro projecto alternativo em Portugal. Somos pouco mais do que dez milhões de pessoas, sendo boa parte completamente alheia a arte e afins. É natural que não existam – como em Nova York – salas de espectáculo apenas de Spoken Word, mas essa é também parte interessante da equação. Se actuar num qualquer bar, e uma ou duas pessoas que não conheciam, saírem de lá com algo novo e diferente no cérebro, o meu trabalho está feito. E nesse sentido, a aceitação até tem superado o que estimava.
Por falar em público, que tipo de audiência tem manifestado mais interesse pela tua obra?
Isso é outra das poucas coisas que ainda me dão vontade de actuar e afins. Cada vez mais, vejo um maior número de pessoas com pouco ou nada em comum. Evidentemente, é natural a maioria ser público que consome cultura alternativa, mas vejo numa parte cada vez mais significativa pessoas bem mais velhas, sem qualquer peça de vestuário com remendos ou patches [risos]. Para mim é positivo, no sentido em que quero a mensagem o mais divulgada possível. Ter no mesmo público adolescentes de vestidos vitorianos, professores universitários e tipos que meteram ácido só para experienciar melhor uma expurgação minha é, derradeiramente, interessante.
Acima de tudo, tu consideras-te mais como um escritor, como um músico ou uma mistura de ambos?
Sou só um gajo que conta pensamentos / histórias. Acho estupidamente petulante considerar-me escritor ou músico. Apesar da minha javardice, sempre levei muitíssimo a sério pessoas que deram provas reais da sua capacidade. Ver alguém que não faz ideia do que significa a tonicidade auto-proclamar-se de poeta vai-me directamente aos nervos. Para mim, tanto alguém que escreve um Requiem como um puto norueguês que escreve uma Dunkelheit, têm validade artística. Mas não podem ser eles a dizê-lo. É a obra que define o nome a quem a criou.
Como surgiu a ideia de musicar os teus escritos?
Foi relativamente natural. Desde a adolescência que sou ligeiramente obcecado por música. Acho fascinante graves e agudos conseguirem criar a diversidade musical que conhecemos hoje em dia. Quando estas belíssimas coisas dos computadores sugiram, em especial quando comprei um microfone do mais ranhoso que possas sonhar, comecei a brincar com o som. Foi, rapidamente, evidente que um texto dito dentro de uma textura sonora permitia uma maior facilidade de assimilação por parte do ouvinte. Digamos que foi e continua a ser, uma das minhas ferramentas mais importantes.
Sinceramente, nunca. Sempre trabalhei com preceito de musicar as palavras, e nunca o contrário. E como controlo todo o processo (não se tratando de uma banda, no sentido típico em que várias pessoas contribuem para a criação da música) tudo é relativamente simples. E claro faço sempre os possíveis para trabalhar com as pessoas mais talentosas que conheço para que as minhas ideias musicais, por mais estranhas que possam à partida ser, acabem por ser concretizadas.
As tuas apresentações ao vivo, expurgações no teu conceito, devem ser vivências muito íntimas e pessoais. Como as descreverias?
São-no, de facto. Daí o nome Expurgação. Tenho uma perspectiva muito simples sobre a arte que consumo: gosto muito de técnica, mas sem sentimento é tudo uma grande treta. E faço o mesmo nas minhas coisas. Há de facto muito trabalho, pois prefiro actualmente trabalhar com músicos de carne e osso. Não gosto de fazer teatro; representar a mesma coisa, noites e noites seguidas acabava comigo em dois tempos. Gosto que as coisas se descontrolem, gosto de errar e ter que dar a volta. Enfim, pretendem-se intensas, intimistas mas acima de tudo, que façam pensar. Que eu sirva de objecto apenas, para que assim as pessoas cheguem ao próprio significado da ideia, aplicando-a a eles mesmos.
Em relação aos teus outros projectos, o que nos podes adiantar?
Neste momento estou a produzir o disco de Insecta, um projecto muito interessante que deverá agradar a apreciadores de Aghast e afins. Vou, também, durante este ano encerrar Self-Inflicted Error, num disco que sairá também pela Sanatório. Tenho outras coisas, mas estas são as mais imediatas.
Voltas a apostar numa edição digital. Para já este é o único formato, certo? Há perspectivas para a edição de algo físico?
De facto, há. Por mais estranho que a ideia pareça, actualmente, existem ainda alguns a manter a tradição dos Médici viva. E como tal, uma editora nacional, deverá fazer uma edição física limitada do Ruína. Acho insano porque ninguém compra música e, evidentemente o poder económico está mais do que limitado, para toda a gente, portanto alguém que edite algo meu como única certeza a satisfação de ver a minha obra num formato físico é, mesmo, muito, muito bom. Não posso adiantar mais, pois a edição será, como disse, especial, muito para lá da simples caixa com um CD dentro. Será bem mais do que isso, e ainda por cima, naquela que considero uma das melhores editoras nacionais. Mas não sou de todo contra as edições digitais. E muito menos as considero como algo de pouco valor para com a obra. Continuarei a fazê-las, pois quero dar oportunidade a toda a gente para ouvir, mesmo os que vivem da mesada dos pais. Também eu copiei cassetes e cassetes sem dar um tostão aquelas bandas. Quando pude, fui a concertos e comprei aqueles originais que gosto mesmo.
Ruína foi registado nos Orion Studio, na Covilhã. Como decorreu o processo de gravação?
Foi magnífico. O Impius, dono do Orion, é uma das pessoas que melhor compreende som e como o manipular, moldar. Para além disso, conhecemo-nos muito bem e isso ajudou imenso no trabalho que fez. Passou muitas e muitas horas acordado, depois de trabalhar 8 horas para produzir isto sem ganhar um único tostão de lucro. Basicamente levei os textos, as ideias e juntamo-nos os três no Orion enquanto fazia frio lá fora. O Arcanus foi o escolhido para gravar todos (repito, todos) os instrumentos no disco e nunca precisou de mais do que dois takes para o fazer. Foi deveras impressionante e uma daqueles momentos que hei-de levar para a cova como uma das coisas mais especiais que vivi nesta vida. Foram sete anos de trabalho condensado em dois dias, mas nada que rodadas de café no tasco lá do sítio e meia dúzia de componentes alucinogénios não resolvessem.
O teu EP e single anteriores, foram disponibilizados pela Necrosymphonic. Desta feita foi a Sanatório Prod.. Que razões para a mudança?
Com efeitos práticos nunca surgiu uma mudança efectiva. Inicialmente ainda ponderei enviar o disco para as editoras nacionais mas nenhuma das propostas continha aquilo que eu queria para o disco. Então, optei pela Sanatório. Mas claro, no processo passaram vários meses. Surgiu então o convite da Necrosymphonic – que para quem não conhece, é uma das melhores editoras e promotoras em funcionamento em Portugal – e tive todo o gosto em aceitar. É mais do que provável que continue a trabalhar com a Necrosymphonic.
O single Apneia é uma conjugação de esforços entre ti e outros elementos. Como surgiu essa oportunidade e como vês o resultado final?
Foi tudo muito simples, como o é sempre aliás, quando tens três pessoas dedicadas a criar alguma coisa somente pelo prazer de o fazer. Basicamente, o Beyonder tinha escrito uns textos que imaginou recitados por mim. Sobre os mais do que capazes ombros do meu caro Charles Sagnoir recaiu a parte musical, tramada de executar pois foi feita após a minha voz estar gravada. E na minha opinião correu tudo muito bem. É um facto que sinto algum constrangimento por só constar “Aires Ferreira” no título, pois limitei-me a interpretar o excelente texto, numa ambiência sonora de igual qualidade. Mas, sem dúvida alguma, o resultado final satisfaz-me plenamente.
Tudo leva a crer que sim. Gosto bastante de interpretar coisas que não foram feitas por mim e faço-o de forma regular. Portanto, desde que com as pessoas certas, estou mais do que interessado em repetir a experiência.
E para breve o que já está planeado?
Precisamente algo do género. Alguém me abordou com a ideia de fazer um trabalho de Spoken Word em inglês, lendo textos de outros autores. A ideia é demasiado fresca, mas quiçá, poderá acontecer. Nos últimos dois meses, tenho vindo a trabalhar no sucessor do Ruína. Tenho uns 50 textos escritos e perto de 30 “músicas” para os mesmos compostas. Estou a gostar muito do resultado final da maioria dos temas. Tenho, finalmente, as condições que precisava para realizar todas as minhas ideias, coisa que até aqui nunca tive na sua plenitude. Já agora, ficas com o “exclusivo” [risos]: Chamar-se-á Mania, será provavelmente um disco duplo e, musicalmente, é ainda mais estranho/abrangente que o Ruína. Não tenho mesmo qualquer data prevista para o lançamento. Mas espero, ainda este ano, ter oportunidade de fazer uma ou outra Expurgação. Olha, Moimenta da Beira, local de excelente paisagem e melhor vinho, por exemplo. [risos] E claro, muito obrigado pelo interesse do Via Nocturna. Continuem, que este “trabalho” é muito mais preciso e importante do que habitualmente se julga.
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