Entrevista: Uivo Bastardo


Para já o ano tem sido fértil em novos projetos que se candidatam a revelação do ano. E um deles são os Uivo Bastardo, banda que se destaca, claramente, pela utilização da língua portuguesa. E ainda bem que o fazem porque as letras de Hélder Raposo têm imensa força e consistência e estão perfeitamente enquadradas pela musicalidade criada em seu redor, naquilo que resultou em Clepsydra. Foi precisamente com o letrista, poeta e mentor do projeto que falamos.

Olá Hélder, como estás? Quem são os Uivo Bastardo? Podem contar-nos um pouco a respeito da génese e dos objetivos deste novo projeto?
Olá. Bom, Uivo Bastardo é uma banda com 5 elementos. Em comum, temos o empenho em querer desenvolver a sonoridade criada de modo a vincarmos uma identidade própria. Queremos fazer mais discos e tocar ao vivo sempre que possível para concretizarmos da melhor forma este objetivo maior. Já quanto à génese, diria assim: começou com outras pessoas uns anos antes, mas infelizmente os avanços feitos (já com este tipo de sonoridade no horizonte) não foram suficientemente consequentes, porque fomos perdendo entrosamento e acabámos por nos desmembrar. Fiquei apenas eu e o André (teclista), no Verão de 2017, e perante essa contingência optámos por não canalizar a nossa energia para a reconstrução da banda. Apostámos, em contrapartida, na contratação de um produtor para concretizar e desenvolver os esboços das músicas que tínhamos. A escolha recaiu no David Jerónimo e a partir daí tudo correu muitíssimo bem. Depois de um ano intenso de trabalho conseguimos o resultado que queríamos, mas ainda não éramos uma banda. Começámos a partir daí essa procura e passado algum tempo conseguimos integrar duas pessoas que agora são elementos indispensáveis: primeiro o Paulo Bretão (baixo) e depois o João Tiago (guitarra).

E como surgiu este nome Uivo Bastardo?
Foi um processo gradual que recua à tal primeira formação. Começámos por nos chamar Adamastor (e agora até há uma banda com esse nome), mas passado um tempo começámos a querer mudar de nome. Enfim, depois de tanta tentativa e erro lá chegámos a esta formulação que nos entusiasmou bastante porque traduzia bem a intencionalidade do nosso som e imaginário lírico. Uivo porque é uma espécie de um grito urgente que vem das entranhas, e Bastardo porque aquilo que impele esse uivo é um sentimento de desamparo relativamente a um mundo humano a que parece estranho pertencer, por ser demasiado hostil e paradoxal.

Que movimentos ou estilos mais vos influenciam?
É difícil responder a essa questão porque entre todos existe uma grande abrangência de gostos, donde resulta um inevitável eclectismo. Cada um tem o seu background musical e afinidades estilísticas. Em bom rigor, nem eu sei ao certo o que é efetivamente mais marcante para os outros, porque é uma espécie de não assunto. Ou seja, nem calha falar nisso. Agora, claro que há denominadores comuns, porque toda a gente gosta de sonoridades pesadas. Mesmo que não exclusivamente, é algo que está bem presente e é uma espécie de linguagem comum. Influências toda a gente tem, mas a nossa ambição artística é soarmos a nós próprios. Engrossarmos as fileiras de um estilo ou tipo de bandas é algo que está nos antípodas do que nos move.

Como foi todo o processo de criação de Clepsydra?
Foi um processo de trabalho intenso, mas muito estimulante. Acompanhei praticamente todos os momentos da produção que o David desenvolveu no estúdio dele, os Malwaresoundstudios. Ele foi muito ativo e crucial para reconstruir os temas, rearranjá-los, criar-lhes novas possibilidades e arranjos. Eu e o André ainda fomos trabalhando alguns sons, atmosferas e loops para complementar as estruturas e linhas base, mas a intervenção maior foi mesmo do David porque ele encarnou, e bem, aquilo que é efetivamente o trabalho de um produtor. Não se limitou a tocar, gravar e misturar. Foi, como disse, muito ativo e isso permitiu que as músicas já existentes subissem para um outro patamar de qualidade.

Os atuais músicos dos Uivo Bastardo não estiveram todos na fase de gravação, pois não? Que alterações houve na banda nessa fase?
Não houve propriamente alterações. Simplesmente começou como um projeto para se transformar numa banda. O trabalho de produção do David foi feito apenas comigo e com o André porque não existia mais ninguém. Daí termos recorrido a músicos de sessão para esse efeito. O Dikk para o baixo e o Miguel Camilo para a guitarra. São músicos excelentes e pessoas de confiança do David, por isso essa parte correu bem. Só quando ficámos com o disco gravado é que nos preocupámos em procurar os elementos para assegurarem essas funções, de modo a sermos uma banda. Foi só uma opção pragmática para fazer as coisas acontecer, porque não era viável estarmos a criar uma banda ao mesmo tempo que começávamos a gravar.

Imagem forte da vossa música é a utilização do português, o que resulta particularmente bem, permitam que vos diga. Porque optaram por esta via?
Porque constatei que é a forma natural de me expressar. Gosto de escrever e, para além disso, vejo muitas potencialidades e beleza na língua portuguesa. Acabo, no fundo, por me sentir muito confortável nesse exercício. Sinto que é a maneira mais eficaz de dizer o que eu quero da maneira que me é própria. Sobretudo quando o registo é mais poético. Sou eu a escrever, com o meu estilo e as minhas idiossincrasias. E depois quando corre bem, faz com que a interpretação e a vociferação sejam mais intensas e genuínas.

Utilizando a língua portuguesa, os Lusíadas seria uma fonte de inspiração obrigatória ou foi apenas casual?
Foi apenas casual. Quando ainda éramos os Adamastor criámos a estrutura da Tormentório na lógica de ser uma mera introdução. Mas fomos explorando e percebemos que aquilo podia evoluir para um tema. Eu, em especial, vi ali margem para a música ter letra e poder ser cantada. Depois pensei: bom, já que somos os Adamastor impõe-se uma letra alusiva aos Lusíadas, sobretudo as estrofes relativas a essa figura tão icónica da epopeia. Escolhi o canto que me pareceu adequado e conseguimos conjugar as coisas. Depois abandonámos o nome, mas a música já existia e agradava-nos. Era frustrante atirá-la para a gaveta. Por isso pensei, porque não mantê-la? Fica uma espécie de homenagem ao nome maior da nossa literatura. Mas tirando este tema, todos os outros refletem a minha escrita pessoal.

Há ideias para utilizar poesias ou textos de outros autores, tendo até em consideração a força que as vossas palavras têm?
À partida os textos serão meus porque gosto mesmo de escrever as letras, mas não sou nada intransigente com isso. É uma hipótese que não me incomodaria nada. Há tanta qualidade por aí que se as coisas eventualmente se conjugarem num tipo de colaboração desse género, porque não? O importante é sempre o resultado final. E os processos de colaboração podem ser tão interessantes e inspiradores que se tiver de acontecer, acontece com toda a naturalidade.

Como ficam as vossas situações nas vossas bandas? Continuam por lá ou agora é a aposta total nos Uivo Bastardo?
Bom, eu e o André não temos mais nenhuma banda, portanto o foco é exclusivo. No caso dos outros elementos é com naturalidade que se assume o envolvimento noutras bandas ou projetos, porque o que prevalece é o espírito de compromisso. E esse compromisso é real. Só temos de criar as condições para irmos concretizando os nossos objetivos nos prazos que vamos estabelecendo. Todas as pessoas têm a maturidade suficiente para gerirem as coisas de maneira a conseguirem, dentro dos constrangimentos que todos têm, contribuir para aquilo que são os objectivos a que nos propomos. O Paulo está também nos Collapse of Light, o João Tiago nos Sunone e o David..., bom o David é músico profissional e esta é a sua atividade. Para além de Concealment e Tambor trabalha como músico com muitos artistas, produções, espetáculos, etc. Mas enfim, como disse, o que sempre prevalece é a postura de compromisso para com os objetivos. E enquanto assim for, mesmo que não seja sempre fácil, haveremos de conseguir alcançar aquilo que nos propomos.


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