José
Mário Branco já não está entre nós, mas ainda teve tempo de deixar a sua marca
no novo álbum de Duarte, No Lugar Dela. Um disco executado com um trio de fado
e um quarteto de cordas onde a voz do cantor acentua a emoção. Um disco de
empatia onde se canta e conta sobre o lugar de umas quantas mulheres e se
apresenta o olhar de um homem sobre esse lugar.
Olá,
Duarte, obrigado por despenderes algum tempo com Via Nocturna e parabéns pelo
excelente álbum No Lugar Dela. Começando, precisamente, por aí,
porquê No Lugar Dela? Porquê a escolha deste título e que significado
tem?
Sou eu quem agradece a conversa,
bem como as tuas tão gentis palavras de partida sobre este lugar. No Lugar
Dela surge enquanto título de um trabalho fundamentado num exercício
empático. Foi o título escolhido nesta tentativa de nos colocarmos no lugar de
outros, ou neste caso de outras, sem que sejamos o outro. O conceito de partida
do disco é pois o da empatia e a história do disco acaba por ser a procura dessa
empatia nesses lugares de vida.
Com
a temática da mulher em destaque, de que forma é que tua formação de base e
profissão (psicologia clínica) te ajudaram a criar e a desenvolver a temática
lírica?
À partida, mais que a questão de
género, importou-me a pessoa e o meu olhar sobre o lugar desta. As temáticas
das histórias de vida e das relações estão no campo da minha prática clínica e
artística, sendo que isso para mim é um privilégio. Tenho, digamos, que um
acesso privilegiado a essas matérias nas duas áreas, muito embora sejam trabalhadas
para diferentes fins e em diferentes contextos. Se na psicologia as histórias
de vida e as relações são para “cuidar” ou “fazer cuidar”, na música, essas
mesmas histórias de vida e relações são para cantar ou, se quiseres, sublimar.
Musicalmente,
este é um disco cantado por um fadista… mas que não é um disco de fado. Como
conjugas estas duas vertentes?
Não estive preocupado em conjugar
ou encaixar, mas antes em poder servir as diferentes naturezas de canto que os
lugares pediam. Ser ou não ser fadista, cantar ou não cantar fados, não foi essa uma
preocupação. A minha preocupação foi servir um canto e servir o outro, qualquer
que seja, da melhor forma possível. Não tenho por princípio fazer discos com a
ideia de estes serem ou não serem de qualquer coisa ou caixa. Contudo, não
seríamos intelectual e musicalmente honestos se disséssemos que a matriz
musical do disco está no fado quando não está, apesar de andar muito em voga
dizer-se que são dos fados coisas que nunca foram deles. O que podemos dizer
com seriedade é que esta obra
apela a uma diversidade de matrizes - fado, cante, clássica, rock… - que não aparecem enquanto adornos ou
efeitos de uma matriz de base, mas sim enquanto parceiros de conversa. Neste
disco podemos encontrar melodias de três fados tradicionais. Os restantes oito
temas são cantos dessa natureza variada.
É
nessa perspetiva que adicionas um ensemble de cordas?
O quarteto de cordas clássico
surge, pois da procura por mais “ingredientes musicais” com os quais pudéssemos
“cozinhar” e combinar o trio (também ele clássico) de fado, de forma a podermos
cantar/contar e servir as outras naturezas que não só a do fado.
E,
de facto, este disco mostra uma variedade e diversidade que não se cinge ao
fado. Como é que o descreverias?
Partindo dessa tua ideia de
variedade e diversidade, não será isso porventura fora da caixa?! Mas sem que
se tenha partido daí ou tentado chegar aí de forma consciente. Assim como se essa
variedade e diversidade não fossem um fim em si mesmo.
Como
foi o processo de composição destes temas? Foi uma tarefa fluida? Onde te
inspiraste?
O ponto de partida foram as Algemas
e a epifania sobre estas. Depois seguiram-se diferentes histórias, de
diferentes mulheres, até chegarmos a um Vou-me Embora, Vou Partir com a
esperança de ser e conhecer. As fontes de inspiração foram, pois as histórias de
vida e as relações na figura das mulheres que fazem o disco. Relativamente à
fluidez da composição, foi um processo natural de crescimento a amadurecimento.
Primeiro surgiu o guião, com o seu conceito e com a sua história, e depois,
fomos com tempo, fazendo crescer “o menino sonhado”. No seu todo, foi um
processo de três anos desde a sua génese à edição do disco.
O press-release refere que este é
um disco de combate. Porquê?
No Lugar
Dela poderá ser
conceptualizado enquanto disco de combate à malícia dos dias se partirmos da
ideia de que essa mesma malícia terá que ver com a tão marcante falta de
empatia que vivemos. Desta forma, talvez possamos dizer que todos os temas do
disco são de combate à falta, uma vez que tentam promover a empatia enquanto
conceito fundamental na nossa condição de sermos (e não termos) humanos.
O
disco abre com Algemas e fecha com Vou-me Embora, Vou Partir,
como referiste. É este um disco de libertação? De que forma?
Obrigado e fica o registo, com
agrado, dessa tua pergunta/definição. Liberdade e inquietação são fundamentais
no processo empático e também no pensamento crítico. Sem estes movimentos
cristalizamos (assim como a fruta) e não conseguimos ser ou tornar-nos pessoa.
A
meio do processo, o produtor José Mário Branco deixou-nos. Como foi completar
esta obra, digamos, órfão de produtor?
Infelizmente só foi possível
estar com o José Mário Branco no que respeitou à fase de pré-produção.
Desta forma, a relação com o Zé Mário foi fundamental nessa pré-produção, assim
como terá sido fundamental a relação com os restantes amigos e elementos (mais
ou menos conhecidos e/ou escondidos) que fizeram parte deste lugar em todas as
restantes fases de construção do mesmo. Depois do luto, o disco fez-se porque foi
de muita gente. Da Teresa Muge na revisão da matéria. Do José Mário
Branco na pré-produção. Do Sérgio Rodrigues nos arranjos e nas
orquestrações. Do Carlos Menezes na produção musical.
ReViraVolta foi a primeira escolha
como vídeo. Porquê essa opção, sendo que, na minha opinião, nem é dos temas
mais fortes do disco?
A ReViraVolta é a canção
de uma mulher que canta os dias não se deixando resignar a eles. Uma mulher que
se resolve por ela e com ela mesma. Uma canção com laivos de “saias” do Alto
Alentejo. Se quisermos, uma canção sobre a importância da liberdade e sobre o
também tão importante pensamento crítico para podermos partir por nós mesmos.
Fez-nos por isto sentido que esta pudesse ser uma primeira e possível porta de
entrada neste lugar. Quero acreditar que a força do disco estará no seu todo,
sem se perder nenhuma das partes.
Há
previsões para mais algum vídeo?
Para além do vídeo da ReViraVolta, a Cristina Viana realizou também o vídeo de Mais do Mesmo, o segundo single deste No Lugar Dela. Podem ver esses e outros vídeos no meu canal de Youtube.
Numa
altura em quem ninguém compra discos nem livros, o que te fez apostar num
produto que é apresentado num disco+livro?
A aposta recaiu não tanto por se
pensar um produto, mas antes porque o objeto assim o pedia. Tínhamos a sinopse
e o guião. Tínhamos os textos da Teresa Muge, do João Gobern e do
Ricardo Pais. Tínhamos as fotografias da Isabel Zuzarte. Tínhamos
os desenhos e os vídeos da Cristina Viana. Não faria sentido ser só e
mais um disco.
A
terminar, mais uma vez obrigado, Duarte, e dou-te a oportunidade de acrescentar
algo mais ao que já foi abordado nesta entrevista?
Sou eu quem agradece uma vez mais a conversa e também a escuta deste
lugar. Procuremos, pois dias mais leves. Procuremos, pois a empatia, sem
deixarmos de pensar criticamente os nossos dias. Assim como se fundamental
fosse a empatia.
Comentários
Enviar um comentário