Entrevista: Hélder Bruno

 


Há quatro anos, A Presença, Serena e Terna foi uma extraordinária surpresa. Quatro anos volvidos Hélder Bruno regressa aos discos com mais uma obra fantástica. Under A Water Sky começa onde o álbum anterior terminou e evolui em diversas direções, mostrando uma grandiosidade e criatividade raras. É o próprio pianista quem nos fala da criação e gravação desde disco. E de muitos outros aspetos pertinentes, numa conversa profunda.

 

Olá, Hélder e sê bem-vindo de volta! A Presença, Serena e Terna foi um marco na música portuguesa. Agora com teste do tempo passado, como sentes que foi o seu alcance?

Viva, Pedro! Muito obrigado! Superou as minhas expetativas… comecei esta viagem em junho de 2016. Até entrar em estúdio para o primeiro álbum fizemos muitos concertos… um número de concertos que ultrapassou o que prevíamos… o que, para quem estava fora da cena da música nacional e, ainda por cima, numa música que – à partida – seria de difícil circulação não deixou de nos surpreender. Depois, a recetividade foi tão intensa e positiva que julgámos que seria pertinente produzir um álbum. Foi assim que em março de 2018 nasceu A Presença, Serena e Terna. Outra curiosidade é o facto de os concertos de pré-apresentação do álbum terem sido realizados na Holanda. Foram 3 concertos, piano solo, em Amesterdão e Utrecht. Já tínhamos lançado os singles e os videoclipes estavam a passar em alguns canais internacionais de televisão, para além das redes digitais… Em Amesterdão, o primeiro concerto foi comentado, o que me deixou muito curioso, por um lado, e algo apreensivo, por outro. Mas foi uma experiência muito gratificante e surpreendente. Com a saída do álbum conseguimos fazer com que a minha música chegasse a mais pessoas. É isso que me motiva: chegar a mais pessoas e, se possível, tocar-lhes. Componho para isso… Para falar e transmitir o que a palavra não consegue… para chegar ao outro, para chegar aos outros… de uma forma que só a música consegue.

 

Algum tempo depois do lançamento de A Presença, estivemos juntos e já estavas com ideias de um sucessor. Demorou quatro anos. Porquê? A pandemia foi a principal causa?

É verdade… de facto, a pandemia veio atrasar a edição deste segundo álbum… No final de 2018, início de 2019, Nuno Gama convidou-me para criar a banda sonora para a apresentação da sua coleção de inverno na ModaLisboa. Uma coleção apresentada de forma muito interessante, como Nuno Gama já tem feito, aliás, desde há muitos anos… A apresentação não teve desfile, não teve passerelle… os músicos estavam colocados no centro da ação, ao lado dos manequins que eram, acima de tudo, atores de uma narrativa… foi uma apresentação de uma coleção de moda com um enquadramento cénico muito peculiar. Já nessa altura foi comunicado que se faria a pré-apresentação do album neste evento, de Nuno Gama. Aliás, o Vasco Ribeiro, O Gajo, o JP Vinagre (que não gravou, mas que toca comigo nos concertos), já estiveram comigo em palco nessa altura… A pandemia instalou-se numa altura em que me encontrava também a terminar o doutoramento na Universidade de Aveiro… por tudo isto decidi aproveitar para esperar… No entanto, caso não existisse o contexto pandémico, com as limitações daí decorrentes, talvez o álbum tivesse sido lançado em 2020… Por tudo isto só o lançámos em maio de 2022.

 

Eu sei que quando compões consegues visualizar na tua mente o que queres e que nem sempre isso é possível transpor para uma pauta. Sentiste esses momentos na composição de Under A Water Sky?

Um dos aspetos positivos da pandemia foi o tempo. O «tempo» - esse tesouro! Tive tempo para ir depurando ideias… Queria muito ser o mais fiel ao que via e ouvia interiormente… É difícil… pelo menos para mim foi e julgo que será sempre… ainda tenho esperança que a neuroplasticidade venha a contribuir para, gradualmente, com o exercício contínuo e regular, possa ir sendo cada vez mais facilitado através do estabelecimento de novas sinapses que liguem o espírito à matéria (risos)… Efetivamente, houve fases dolorosas, até, no processo de transferir para a pauta o que pretendia, esse universo imagético e sónico que via e ouvia interiormente e que me levaram ao universo geral – à história e à música – de Under a Water Sky.

 

A Presença, foi o resultado de um trabalho de alguns anos em que foste compondo os teus temas. Esta nova obra foi criada totalmente a partir do lançamento do álbum anterior ou ainda foste buscar algum tema mais antigo?

Existem dois temas que já tinham vida antes do álbum: Rosa, que no disco é cantada pelo meu querido amigo Carlos Martins (aka Rato), uma canção que escrevi para a minha banda de rock, Vonavemor, onde era vocalista, em 1993 ou 1994… por aí… e o Rato canta-a desde essa altura, aproximadamente… E se já nessa altura o Rato a cantava melhor do que eu, atualmente canta-a “ainda melhor ainda” (risos).  A faixa Land, Red And Warm, cantada pela única Maria João, com uma estória que a Maria João escreveu em changana (uma língua banta, do sul de áfrica, falada também em moçambique) foi composta também há alguns anos e a pensar na voz da Maria João como elemento central… era mesmo a voz da Maria João que ouvia interiormente e que usava como recurso para a criação do tema, sem nunca imaginar, no entanto, que algum dia a iria gravar e muito menos com a própria Maria João… Todos os outros foram compostos depois do primeiro álbum ter saído…

 

Under A Water Sky é um disco conceptual? Que história é narrada pelas tuas músicas e poemas?

Existe uma história que unifica toda a narrativa de Under A Water Sky. Cada faixa é um capítulo desse conto, mas também uma história em si mesma. A história é a seguinte:

Sob um céu de água (Under a Water Sky)

Porta 17. Chama-se Dinis. Morava onde o rio encontra o mar. E do rio, do mar e da terra vivia todos os dias com aquilo que corpo e alma necessitavam. Amor, sacrifício, alegria. Vida vivida. Verdadeira. Feliz.

Foi marinheiro que uma sereia quis levar para o mar profundo (The Sailor, the Mermaid and the Sea)… não fosse a Bruxa Branca e ter-se-ia naufragado (The White Witch of the Seas).

Sim. Naufragou… mas em noite de tempestade (Holy Storm) enquanto as mulheres rezavam na praia (Ave Maria). As noites e os dias esperaram no mar até que lhe chegou uma ilha (The Island). Fonte de esperança.

No morro um roseiral, do qual protegeu uma rosa como sua (Rosa). As noites e os dias esperaram até que o fogo chegou e com a chuva se esfumou.

Tudo floresceu e ele, contudo, sempre com tudo (Blossoming).

E náufragos de todos os lados de todo o mundo chegaram. Nova terra, vermelha e quente (Land, red and Warm), sob um céu de água.

 

Para este álbum, na minha opinião, mantiveste a mesma matriz, mas quiseste ir mais longe. Foi por isso que o leque de convidados se alargou?

Quis mesmo ir mais longe. Esforcei-me para depurar a minha linguagem estética, que se enquadra no indieclassical, neo classical, e concretizar ainda mais uma certa identidade musical, cujas influências são múltiplas, como espero que se perceba: da música erudita à world music, passando pelo minimalismo, pelo pop-rock e pelo jazz. Mesmo ao nível das letras, optei por escrever em português (Rosa), francês (Dinis) e latim (Island). Ave Maria é também em latim, mas a letra não é minha, obviamente. Os convidados foram pensados de acordo com a função que desempenhariam na narrativa musical. São personagens da história. Todos os instrumentos utilizados estão, de forma mais ou menos simbólica, relacionados com uma representação, uma função na história global e na de cada peça… O Marito Marques toca percussão em Door 17, Rosa e Land, Red And Warm; Vasco Casais toca o solo de nyckelharpa em The Sailor, The Mermaid And The Sea; O Gajo e a sua campaniça estão em White Witch Of The Seas; Sérgio Carolino faz o solo de tuba e eletrónica em Holy Storm; Rato, canta Rosa; e Maria João canta (e escreveu a estória em changana) Land, Red And Warm. Em suma, os artistas que convidei são elementos para mim cruciais para a exposição e o desenvolvimento da narrativa de cada faixa e de todo o álbum.

 

E com esse leque de convidados, também era tua intenção tornar o álbum um pouco mais experimental ou avant-gard?

Pretendia, acima de tudo, transpor esse universo interior, imagético e sónico, para a pauta, com o objetivo, evidentemente, de o poder reproduzir em álbum e ao vivo. Estou muito feliz com o resultado.

 

Sentes que este caminho é aquele que mais se identifica contigo?

Neste momento sinto-me muito identificado com este álbum. Mas estou já a pensar no próximo e talvez faça um álbum com versões das peças anteriores, mas só com piano e sintetizadores, talvez… Nos concertos que tenho apresentado a solo tenho recebido algumas pessoas que me referem que escutar a música em piano solo é uma experiência diferente… Já tenho algumas peças em piano solo que podem ser orquestradas… e as que estão gravadas com ensemble completo têm versões para piano solo, que apresento em alguns concertos.

 

Por falar em convidados, o Marito Marques é repetente, mas todos os outros são novos. Como é que uma ideia para incluir uma tuba ou uma viola campaniça ou uma nyckelharpa surge?

Senti que precisava de ter o Vasco Casais e O Gajo, assim como todos os outros, nos temas em que colaboram… O Vasco é um multi-instrumentista, um músico pleno… Na ModaLisboa, aquando da apresentação da coleção de Nuno Gama, como referi antes, tocou gaita de foles… No entanto, com o tempo entendi que poderíamos pensar noutro timbre, tendo em conta o que pretendia… falei com o Vasco, ponderámos e optámos pela nyckelharpa. A ideia é representar simbolicamente a figura central da história: a personagem que de alguma forma poderá representar cada um de nós… A nyckelharpa personifica Dinis, o marinheiro, em The Sailor, The Mermaid And The Sea. Dinis é também o nome do meu filho e a peça com o seu nome é-lhe dedicada, tal como no anterior tinha uma peça dedicada à minha filha, Maria. O Gajo e a sua campaniça estão na peça White Witch Of The Seas e pode perfeitamente personificar a bruxa branca que vem salvar o marinheiro da sedução ilusória da sereia. A tuba de Sérgio Carolino, em Holy Storm, é o espírito da tempestade… São, portanto, personagens…

 

No álbum anterior tiveste o Nuno Guerreiro nas vozes, agora tens a genial Maria João. Como foi trabalhar com ela?

Maria João é única. No mundo. É furacão de arte, música e amor. Foi tão bom trabalhar com Maria João!... Desde logo, uma honra e um privilégio. E o tema ficou como imaginava. A Diva revelou uma profunda humildade… desconcertante, até, para mim… Aquela humildade que só as/os Grandes Espíritos têm… E ainda teve a generosidade de sugerir inserir a estória que redigiu em changana no tema que gravou. Foi lindo vê-la a entrar no tema, a construir a personagem. A força anímica, a sensibilidade, a entrega, o empenho, que revelou… houve momentos arrepiantes e lágrimas durante a sessão de estúdio de tanta emoção... Maria João é maravilhosa! É única.

 

Por falar em vocais, neste trabalho, em termos femininos, a Mafalda Camilo divide a sua prestação com a Ana Maria Rosa. Qual foi a tua intenção de incluíres mais uma solista?

A Mafalda Camilo foi-me sugerida e apresentada pelo músico e amigo João Francisco. A Mafalda entende muitíssimo bem a minha música. O timbre é belíssimo e a musicalidade, aliada à sua sensibilidade e inteligência, estão perfeitas para a minha música. A Maria Rosa é uma jovem voz, recentemente licenciada pela ESMAE e a iniciar o mestrado brevemente. Adoro o timbre da Ana, a sua sensibilidade, musicalidade, rigor... A Ana estreou a minha Ave Maria. Por isso fazia sentido que estivesse no álbum. Mas não só. Neste álbum as vozes femininas têm duas funções: a de “coro grego” como narrador heterodiegético, omnipresente e participante. O coro que se escuta em Dinis, ou as mulheres que rezam na praia em Ave Maria, as vozes que se escutam em Island e que representam a voz dos náufragos quando encontram uma ilha, ou as vozes representadas nas harmonias vocais em Land, Red And Warm.

 

Door 17 foi o primeiro vídeo apresentado. Porque a escolha deste tema?

Achamos que este tema sistematiza bem a identidade estética deste álbum, a tal fusão de várias linguagens e estéticas musicais que se aglutinam de forma orgânica e sem delimitações entre si, antes um único discurso musical e numa única estética, se calhar a tal indieclassical… Depois, porque é a primeira faixa do álbum e é a porta da casa do marinheiro Dinis. É aí que tudo se constrói, que tudo tem um início, uma reflexão. É um universo interior de afetos, sentimentos, angústias e alegrias, tristeza e esperança. É a vida na sua mais intensa intimidade. É também a porta da casa ao lado da minha… é verdade (risos)! Foi comprada por uma grande amiga e eu decidi homenagear os meus amigos e amigas dando ao título o número da porta da casa ao lado da minha…

 

Onde e com quem gravaste? Como correram os trabalhos? Tudo como planeado?

Para além dos convidados que já falámos tenho o privilégio de ter neste projeto excelentes profissionais, grandes músicos e pessoas maravilhosas: Maria Kagan e Tünde Hadady (violinos), Rogério Monteiro (viola d’arco), Feodor Kolpashnikov (violoncelo), Miguel Falcão (contrabaixo), Mafalda Camilo (voz), Ana Rosa (voz), Gonçalo Santos (captação, mistura e masterização) e Miguel Seco (mistura e masterização). O design do álbum é de Catarina Parente e as fotos são de Adriano B. Neves. A capa é de Sofia Redes Martins e a comunicação é de Paula Casanova. O álbum foi gravado no grande auditório do Conservatório de Música de Coimbra, editado pela Lusitanian, tem o selo da Antena 2 e o apoio do programa Garantir Cultura, precisamente no âmbito das medidas de apoio às artes implementadas pelo governo, o que foi muito positivo. Todo o dinheiro do Garantir Cultura e do investimento realizado pela Lusitanian e pela Cherry Blossom – a empresa que faz o meu management – foi para músicos, técnicos, aluguer de estúdios, restaurantes, combustíveis, portagens, designers, fotógrafo, gráficas, fábrica de CD, distribuição digital… E tudo isto ainda reverteu para o Estado através dos impostos. Se tudo correr bem, este investimento terá um efeito multiplicador em todos estes agentes, setores e para o Estado. Aliás, o setor da cultura contribui, diretamente, com quase 4% para o PIB nacional e o investimento do Estado neste setor não é proporcional ao que executa noutros setores. Digo isto porque existe um mito relativamente aos apoios atribuídos ao setor das artes e da cultura. Julga-se que são setores que vivem exclusivamente de apoios do Estado. Não é verdade! Vivem com excelentes gestores e profissionais que fazem “omeletes sem ovos” e que ainda assim contribuem para o PIB nacional muitíssimo acima do que recebem do Estado. Empregam, fixam pessoas, dinamizam os territórios, operam de forma crucial no turismo, atraem investimento, projetam Portugal e melhoram exponencialmente a imagem do país, especialmente em alguns segmentos de público estrangeiro. Há setores que recebem muito mais apoio do Estado para manterem as suas atividades, manterem empregos, as produções e a importação. Esses sim, e muito bem porque deles dependem milhões de portugueses, estão muito mais dependentes do Estado do que o setor da cultura. Se o setor da cultura beneficiasse de uma percentagem de financiamento do Estado mais próxima do que realmente contribui, estima-se que a sua contribuição para o PIB nacional aumentaria exponencialmente. Mas mais! E muito mais importante, uma vez que até deste aspeto resulta economia, produtividade, rentabilidade, bem-estar, individual e coletivo: a arte e a cultura continuem acima de tudo para tudo isto através do seu valor, da sua “mais-valia” humana. O individuo e as comunidades enriquecem-se, valorizam-se, desenvolvem e progridem através da sua cultura. Da forma como se sentem consigo, com os outros e com o mundo, com a vida. E isso possui um valor impossível de quantificar. É bom e importante que se saiba disto e tenhamos a consciência e a responsabilidade cívica de não embarcar em discursos populistas e mentirosos. Neste e noutros temas centrais da nossa sociedade. É o problema da Democracia: exige muito de cada individuo… É preciso pensar, estudar, analisar… e isso dá muito trabalho… É mais fácil ouvir o que as emoções querem do que recorrer à racionalidade…, mas pronto… tenho até uma definição para “ser humano”: ser irracional com capacidade racional a que raramente recorre (risos)… como se vê da faixa de Gaza à Ucrânia entre outros territórios…

 

Tens tido oportunidade de apresentar este trabalho em palco? Há outros planos para brevemente?

Sim. Felizmente tenho tocado com regularidade. Estamos já a preparar 2023. Decidimos reestruturar a equipa e os parceiros, que felizmente aumentaram. Fui convidado para o MATE (música, arte, tecnologia, educação), que é um festival e uma feira da indústria da música em Porto Alegre, Brasil, mas ainda não tenho pormenores sobre datas e locais dos concertos. A GDA já garantiu o apoio financeiro (no âmbito do programa de apoio à internacionalização). Sei que há já várias datas, mas ainda não tenho informações concretas. A seu tempo serão divulgadas. Há vários formatos definidos para apresentação: piano solo, dueto, trios, ensemble completo… e o concerto pode ser apresentado em espaços diversos: de eiras na aldeia, a bosques, igrejas, mosteiros, praças, salas de concerto. Esta versatilidade é também uma das caraterísticas políticas deste projeto: uma certa pretensão universalista, na música, desde logo, e nos formatos de apresentação.

 

Muito obrigado, Hélder! As maiores felicidades! Queres acrescentar mais alguma coisa?

Eu é que agradeço muito! É uma honra e um gosto muito grande falar convosco. Felicito-vos pelo excelente trabalho que têm desenvolvido e que é reconhecido há já alguns anos ao nível internacional. Muitos parabéns, muito obrigado e muitos sucessos!

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