João Rui, aka John Mercy não
para. Seja a compor, a atuar, a gravar, ou a fazer outra coisa qualquer. E se
já tínhamos saudados dos a Jigsaw onde compartilha o projeto com Jorri, o álbum
do ano passado com Tracy Vandal, Midnight Presents, serviu para as
atenuar um pouco. Assim como o genial duplo lançamento deste ano, The
Murder Of Harry e West Of The American Night onde surge, como ele
afirma nesta interessante entrevista que nos concedeu, sozinho, mas muito,
muito bem acompanhado.
Olá, João, tudo bem? Antes
de mais deixa-me dar-te os parabéns por mais duas obras sensacionais! No final
do ano passado dizias que este ano seria um ano de muitas novidades para John
Mercy e elas aí estão. Primeiro, são dois álbuns de uma assentada, mas basta
ouvi-los para se perceber que são dois álbuns diferentes. Queres começar por
aí, por explicar as diferenças?
São
diferentes logo de imediato na sua génese e intenção e depois também na
vertente estética. Enquanto no caso do The Murder Of Harry a ideia da
história, do conceito e das próprias personagens foi evoluindo à medida que ia
escrevendo o álbum, no caso do West Of The American Night, essa parte já
estava feita e era estática; o que foi evoluindo ou adaptando-se foi a minha
interpretação da narrativa do Kerouac e dessa forma influenciando o
estado de espírito das canções e das letras.
Porque decidiste lançar
os dois ao mesmo tempo e não mais separados no tempo?
O
The Murder Of Harry deveria ter saído no final de 2021 e já estava
fechado nessa altura, mas com os atrasos decorrente da pandemia e para que se
não perdesse no meio do ruído dela, a Lux Records foi ajustando a data
até chegarmos ao “problema” de entre o The Murder Of Harry estar acabado e a
data de ser editado eu ter escrito o West Of The American Night que
celebraria o centenário do Kerouac - e assim, para não ficar mais tempo
o The Murder Of Harry na prateleira, decidiu-se avançar com os dois em
simultâneo.
Como disse, são álbuns
diferentes. Na tua opinião, qual deles é mais representativo do músico John
Mercy e da pessoa João Rui atualmente?
É
uma boa pergunta e quiçá não tão simples de responder porque à mesma hora que
escrevo isto também estou a trabalhar num álbum com a Raquel Ralha e o Pedro
Antunes que se aproxima de sonoridades mais próximas de outro universo e se
afasta por consequência da sonoridade destes. Mas para ser honesto na resposta em
relação a estes dois em particular teria que dizer que o The Murder Of Harry
é mais representativo na medida em que neste não me cingi em momento algum na
questão estética sonora para um propósito específico. No caso do West Of The
American Night, para o enquadrar dentro do espírito da época limitei a
palete de instrumentos que usei apenas a instrumentos específicos da época tais
como os combo organs da VOX por exemplo. E apesar de serem instrumentos
que estão dentro das minhas sonoridades preferidas, neste caso houve uma
intenção particular. Da parte da mistura houve também esse cuidado,
nomeadamente na utilização especifica do posicionamento dos instrumentos na
imagem stereo, tal como nalgumas músicas em que o baixo surge apenas de
um dos lados do espectro.
West Of The American
Night resulta de um convite particular, tendo trabalhado sobre o livro On
The Road, de Jack kerouac. Foi, por via disso, mais difícil de criar?
Sentiste-te, de alguma forma, mais limitado?
Em
verdade foi muito mais simples porque, para mim, geralmente a parte que exige
mais tempo, que é mais demorada e que me leva a ter que criar os álbuns quase
com dois ou três anos de antecedência é precisamente a parte do conceito, da
narrativa, do estudo das personagens, da trama. No fim de criado, sou eu que
estabeleço quais os limites do conceito. Neste caso, todo esse trabalho já
estava feito: tanto o conceito como a história, as personagens etc. Ainda por
cima o facto de ser um livro que já conhecia muito bem ajudou porque são personagens
com as quais convivo há décadas. O limite e fronteiras impostos pela própria
narrativa foi senão benéfico porque não tive que imaginar a personagem para
além do limite dela – ainda que… não seja assim tão simples porque a nossa
interpretação delas é subjetiva e também vai mudando à medida que nós próprios
vamos mudando.
Neste caso particular,
qual foi o teu principal critério e objetivo de trabalho?
Este
álbum surge de um convite para fazer um concerto para homenagear o Kerouac
no seu centenário. Mas ao invés de criar uma espécie de paisagem sonora para as
suas palavras, (porque privilegio o formato da canção) decidi que iria criar um
álbum de canções que sobrevivesse ao evento. Acompanhar a narrativa do On
The Road em canções cuja sequência acompanharia a narrativa do livro e que
seriam intercaladas com leituras dele, com acompanhamento visual (que veio a
ser criado pela artista visual Luisa Neves Soares) para poder criar o
máximo de envolvência possível com a obra. Assim, o primeiro passo foi o da
escolha de qual das edições do livro em que me iria debruçar e onde optei pelo
original antes da censura que a editora lhe impôs e que o levou a atribuir
pseudónimos para ocultar a identidade das pessoas. Depois seguiu-se um estudo
aprofundado tanto do livro como da própria envolvência contextual dela de forma
a poder segmentar a obra por forma a criar os meus próprios capítulos da
narrativa. Criei nessa altura a estrutura base das canções com recurso à
técnica cut-up cuja fama muito se deve a William Burroughs (o Old
Bill ou Old Bull Lee conforme a edição). Depois seguiu-se o estudo
biográfico dos indivíduos (personagens reais) envolvidos na obra para chegar à
construção das minhas personagens e das suas razões e intenções. Em seguida, o
estudo do léxico da época de forma a não cair em anacronismos nalgum tipo de
expressão que fosse usar. Da mesma forma que, para evitar isso mesmo, também
houve secções do álbum que quase me levaram a um levantamento topográfico de
partes dos caminhos dos EUA onde decorreu a ação, porque envolvendo o livro
locais não imaginados que, entretanto, foram alterados com o tempo eu tinha que
compreender não só o que eram na altura como o significado do que se poderia
estar a ver então determinado personagem. Há diversas canções por exemplo em
que tive que mapear os trajetos nelas descritos com um GPS, aferir quais as mudanças
de altitude, qual a vegetação e a fauna inclusive, para poder perceber exatamente
como interpretar a viagem que o personagem fez ou faria em teoria, para poder
então criar com a propriedade necessária as letras finais das canções. Foi um
estudo bastante exaustivo, mas que a meu ver se tornou mais simples pelo facto de
a área de estudo estar relativamente circunscrita. Naturalmente para que não
houvesse uma apropriação maior tive que criar a minha própria mitologia e que à
medida que as canções vão avançando e se vai aprofundando se vai tornando mais
intrincada e interligada, tal como acabam por estar ligadas as ondas à
superfície com os remoinhos do fundo do mar. Depois, em relação à parte da
estética musical, tal como já tinha dito houve intenções muito específicas, mas
não se quedou por aqui, porque eu quis inclusive que houvesse uma ligação
material com o formato da edição da época: o vinil. Como tal, dado que há
limitações físicas em termos do tempo disponível (de 22 min máximo) em cada um
dos lados, houve momentos em que tive que reduzir o tempo de algumas músicas.
Como as canções são sequenciais em relação à narrativa, eu não podia andar a
trocar a ordem delas do lado A para o lado B porque se iria perder o fio e a
ligação à sequência da narrativa. Talvez que se pudesse resumir o principal
critério à necessidade imperativa de respeitar a obra do Kerouac,
homenageando-a sem a copiar.
Sendo um o resultado do
tal convite e o outro não, pode afirma-se que foram compostos em períodos
diferentes e ao longo de épocas diferentes também?
Sim,
enquanto o The Murder Of Harry nasce da vontade de criar e contar aquela
história e estive a trabalhar nele quase dois anos antes de o gravar, no caso
do West Of The American Night o Osvaldo Silvestre (diretor então
do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra) falou-me da tal ideia de criar um concerto de homenagem
ao Kerouac no final de maio de 2022 que deveria ocorrer em 28 de outubro
de 2022. Portanto isso deu-me apenas 5 meses para criar e gravar o álbum,
convencer aquele naipe de músicos fenomenais a juntarem-se à banda The Dead
Beats e ensaiar o concerto para essa data no teatro Paulo Quintela na FLUC.
Para celebrar a ocasião a Lux Records lançou o single Old Bill
com a Raquel Ralha na voz e o Pedro Antunes no baixo e no sax. No
lado B, na canção Shadow Traveller tive a sorte de conseguir o regresso
do violino da minha querida Susana Ribeiro que fez (e fará sempre em
coração) parte dos a Jigsaw durante tantos anos e agora dos The Dead
Beats. Ainda nesse lado B, a Bonnie Blossom na voz, o Luís
Formiga na bateria e o Victor Torpedo na guitarra acrescentam a sua
magia – e, como é um autor que diz tanto ao Victor, tive a sorte de o ter a
criar todo o artwork deste álbum que partiu de uma fotografia magnífica
do Bruno Pires - que também é quem assina todo o processo fotográfico do
The Murder Of Harry que em si daria para escrever um outro testamento. E
já que estamos a falar de artwork, não posso deixar passar sem mencionar
o Gito Lima que para além de duas belíssimas linhas de contrabaixo criou
todo o artwork do The Murder Of Harry.
Embora The Murder Of Harry
não tenha resultado de um convite, também segue uma senda literária de um
romance policial. O que surgiu primeiro – a história ou a música?
Primeiro
surge a ideia. É sempre a ideia a partir da qual vou construído o cenário e
criando os limites dentro os quais a história, a trama e a narrativa irão
decorrer. À medida que a composição avança, (tal como falava acerca do West Of
The American Night), o corpo da obra vai fincando cada vez mais sólido. A
música surge depois para musicar não necessariamente sempre a letra, mas o
espírito da história. Nessa fase em que já estou a trabalhar sobre um conceito
definido, a tal questão do que surge primeiro, se são as letras ou a música não
é clínico; às vezes surgem ao mesmo tempo.
Foi a tua primeira
aventura em discos conceptuais? Tens ideia de continuar nesta vertente?
Não
foi a primeira aventura. De facto, todo os álbuns em que trabalhei até agora (a
Jigsaw) foram sempre álbuns conceptuais. A forma como encaro o formato
álbum anda mais próximo da forma como encaro um livro – e como tal é complicado
para mim não seguir esse processo de primeiro definir um conceito para que haja
uma razão para a existência desse conjunto de canções. Para que elas no seu
conjunto sejam maiores do que a soma delas separadas. Gosto da ideia de que
hajam consequências do decorrer “ação” entre a primeira música e a sétima por
exemplo, ou de compreender a forma como os personagens nos vão visitando ao
longo do álbum e que se vá compreendendo o decorrer do tempo da narrativa delas
– e nalguns casos que personagens que exploro em determinado álbum venham a
surgir de novo noutro álbum distinto, noutro contexto, como se elas próprias
sofressem uma evolução decorrente do tempo ou da sua condição e por
consequência acrescentando à sua complexidade.
Afinal, quem matou o
Harry? Podes esclarecer os nossos leitores e teus ouvintes?
Essa
foi uma questão sobre a qual meditei durante algum tempo: quanto deveria ou não
falar disso nos comunicados de imprensa e nas entrevistas. Isto porque nos
outros álbuns que escrevi (a parte do conceito) eu costumava falar bem mais
deles e esmiuçar um pouco mais o seu conceito, mas neste, atendendo à sua
natureza, acabei por decidir que não poderia dizer mais do que se poderia
encontrar na parte de trás de um livro do género para não estragar a surpresa.
E nesse caso, o leitor/ouvinte é que terá que o descobrir ao longo das canções
esse mistério.
Instrumentalmente,
ambos são discos de uma riqueza brutal. Muitos dos instrumentos são tocados por
ti, mas também tens muitos convidados. Quanto a estes, quando é que eles surgem
ou quando achas que é necessário algo mais na música?
Em
relação aos convidados tenho a sorte de trabalhar já há muitos anos com um
grupo bastante alargado (e fantástico) de músicos tanto na vertente de estúdio
na parte gravação como na parte da interpretação. Como tal, conhecendo eu
sobejamente bem o trabalho deles sei à partida com o que posso contar – como se
tivesse assim à disposição uma palete de cores infindável para pintar um
quadro. O convite, no entanto, pode surgir em diversos estágios da composição.
Por exemplo no caso da canção Old Bill eu já sabia que queria que fosse
a Raquel Ralha a narradora (cantora) da canção, portanto no início desse
processo tive que ver com ela o tom em que eu iria compor a música porque era
especificamente para a voz dela e nenhuma outra e como tal tinha que a servir a
ela. Ainda no caso dessa canção que se refere especificamente a um capítulo do
livro em que um dos personagens fala de saxofonistas, eu quis o Pedro
Antunes a criar um solo psicadélico de sax. No caso da Bonnie Blossom,
que foi a voz a quem mais recorri, na maior parte das vezes a voz dela surge
para dar voz à segunda (ou primeira) personagem. A interpretação que ela traz
na sua voz vem servir a narrativa e a intenção dessas personagens; noutros
casos age como narradora – aliás, no caso das vozes é muito, muito raro usar as
vozes convidadas apenas no papel clássico de coro de suporte e apenas do ponto
de vista musical. Se ali estão tem que haver um propósito: tal como quando a
voz da Bonnie surge logo no princípio do The Ballad Of Harry & The Devil,
que em teoria deveria surgir noutro sítio – mas para a narrativa tinha que ser
logo ali no início. De igual modo, a voz do Carlos Mendes (Kalo)
e do Pedro Antunes no final do Lonesome Lad surgem como
contraponto da razão da primeira voz. Mas depois há os outros convidados como o
Torpedo na guitarra ou o Laurent Rossi na trompa em que me
delicia de tal forma a arte deles que se houver espaço envio as canções com
carta branca para fazerem o que quiserem delas.
Alguns desses
convidados são de renome internacional. Foi fácil convencê-los a participar num
álbum teu (risos)?
Foi
até surpreendentemente simples. Como na altura do nosso (a Jigsaw) álbum
No True Magic eu escrevi a canção Black Jewelled Moon
especificamente para a Carla Torgerson cantar, já havia essa ligação.
Como também depois mais tarde fizemos as primeiras partes dos concertos do Chris
Eckman foi relativamente rápida a aceitação do meu convite. E não desiludiram.
Aliás, todos os convidados foram de uma generosidade absolutamente incrível e
impagável – estes álbuns não seriam o mesmo sem eles. Todos. Mesmo que não os
mencione aqui.
Voltando à riqueza
instrumental, acredito que não seja um trabalho fácil nem de composição, nem de
gravação, nem de mistura. Quem trabalhou contigo nestes aspetos mais técnicos e
que instruções lhe deste?
Tem
as suas vantagens o facto de ser eu quem produz, grava e mistura porque muitas
vezes quando estou a compor, para além do arranjo já estou a pensar também na
forma como vou criar a mistura e como os instrumentos e harmonias se vão
complementar na gravação – assim, para além do conteúdo da própria canção,
consigo logo controlar também a própria “forma” como ela será apresentada e que
ajuda também a ser mais ou menos espartano nos arranjos consoante a mistura que
imagino para ela. Nos casos em que não sou eu a gravar, como as pessoas
envolvidas já têm um determinado nível de proficiência técnica, não tenho que
me preocupar muito com o processo em si, mas mais com a intenção – as
indicações são mais a explicação que lhes dou do que a música trata e qual a
história que ela encerra para que do lado de lá se compreenda qual o método de
abordagem que terão de ter.
À margem destes
lançamentos tens trabalhado nos mais diversos projetos musicais. Se te
perguntasse qual deles te deu mais gozo fazer, que me responderias? Porquê?
Já
são, de facto, bastantes projetos e para não cair no lugar-comum de falar de um
disco dos a Jigsaw que era mais simples, assim de repente poderia falar
da liberdade dos álbuns do Torpedo ou da cumplicidade do Pedro Renato
e da Raquel Ralha. Contudo, das mais de 70 produções em que participei
nos últimos anos, seja a gravar, misturar ou masterizar, [tive que ir contar o
número na grelha excel para não entrar em exageros (risos)] o que mais
me marcou foi provavelmente o disco homónimo dos Twist Connection de
2018 do Carlos Mendes (Kalo). Já tinha gravado o primeiro deles,
mas neste álbum que voltei a estúdio com eles tive a oportunidade de contribuir
com bastantes instrumentos (sempre sob o olhar atento do Carlos, claro, cujo
perfeccionismo não deixa passar nada ao de leve). E foi a minha participação neste
álbum que levou à ideia de criar o Midnight Presents com Tracy Vandal,
assumindo todos os instrumentos e que, em última análise, levou à ideia de que poderia
criar um álbum sozinho e que levou ao The Murder Of Harry (quer dizer…
sozinho mas muito, muito bem acompanhado).
Quantos aos a Jigsaw,
sempre se confirma um novo álbum para breve?
Eu
espero que sim (risos) o álbum em si já está gravado há algum tempo, mas como
tanto eu como o Jorri temos estado envolvidos com a nossa vertente de estúdio
com a BlueHouse, tanto eu na parte da mistura como o Jorri na gravação,
mas também em diversos projetos relacionados com a BlueHouse, o tempo
depois que temos para a Jigsaw acaba por ser menor. Mas espero que sim –
até porque não é apenas um álbum que está guardado à espera de sair.
E palco? O que tem
acontecido e o que há previsto para o futuro? Irás manter a tua The Dead Beats
a acompanhar-te?
A
The Dead Beats é a banda que criei especificamente para o espetáculo do
álbum West Of The American Night portanto enquanto esse espetáculo for a
palco a formação dela será a mesma. Contudo ela poderá ser diferente para o The
Murder Of Harry porque é um álbum com um contexto diferente. Como em
paralelo também há os de a Jigsaw e os espetáculos com a Tracy Vandal
é complicado gerir a agenda dos músicos todos que fazem parte dela. Por mim
ainda levava mais músicos comigo, mas sei que é complicado até em termos
orçamentais poder levar esta estrutura para, por exemplo, palcos de menores
dimensões.
Obrigado, João! Mais
uma vez parabéns! Queres acrescentar mais alguma coisa?
Obrigado,
eu pelo tempo que deram à escuta e apreciação destes álbuns. Numa época em que
parece que o tempo e espaço que se dá à análise das obras é sempre parco, o
vosso empenho em conceder essa mesma oportunidade é sem dúvida admirável. Abraço!
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