Entrevista: Manuel Linhares


 

Não há muitos vocalistas masculinos no Jazz nacional, mas os que há dão garantias de uma enorme qualidade. Ora vejam o que acontece com Manuel Linhares que esgotou a primeira edição do seu novo trabalho, Suspenso. E muito por culpa do mercado… japonês! Mas não só, porque o músico do Porto terminou recentemente uma bem-sucedida tour europeia em formato septeto, com o convidado David Binney. Com a segunda edição de Suspenso já em distribuição, Via Nocturna falou com o compositor sobre todos estes temas.

 

Olá, Manuel, tudo bem? Obrigado pela tua disponibilidade. Suspenso já foi lançado há algum tempo e tem sido um sucesso, não é verdade? Queres contar-nos?

Olá. Tudo bem, obrigado. E obrigado por me receberem aqui no Via Nocturna!  Sim, este álbum Suspenso foi lançado no início de 2022 e tem tido uma ótima aceitação, tanto da critica especializada, como dos ouvintes. Aliás, acabámos de lançar a segunda edição deste disco, já que esgotámos a primeira edição, algo que na era do streaming não pensávamos que seria possível! O Japão foi uma surpresa e teve grande responsabilidade nisto, vendi uma quantidade enorme de CDs para o Japão e, entretanto, fui contactado por uma distribuidora japonesa que me fez uma compra grande e está a distribuí-los por lá. É muito gratificante ver que a nossa música é apreciada tão longe da nossa cultura. Vamos lá ver se conseguimos tocar em terras nipónicas em breve.

 

És apontado como uma das poucas vozes nacionais masculinas do jazz. Porque achas que isso acontece?

Sim, na realidade a representatividade masculina no canto Jazz continua a ser baixa, mas penso que isso estará a mudar olhando para os alunos que tenho tido contacto nos últimos anos. Mas é um facto que existe ainda um preconceito grande (apesar de ter vindo a melhorar) nas questões de género na música. Continuamos a perpetuar uma imagem da mulher cantora e do homem instrumentista, e quer queiramos ou não repetimos estes padrões. Acho que isso influência muito a decisão de um homem se dedicar ao estudo do canto e também da mulher estudar instrumentos tendencialmente tocados por homens tais como, o contrabaixo ou a bateria. Por outro lado, acho que existe de certa forma um legado machista. Acho que a postura dos Crooners mostra bem qual é a visão mais consensual de um homem no canto Jazz, que não deixa de ser uma abordagem do passado e que se escuda de lugares mais sentimentais pela sua força, capacidades e presença vocal. Olhando para outros géneros musicais como o RnB ou o Rock, sinto exatamente esta mesma fuga à demonstração de vulnerabilidade e do sentimento. Mas penso que as novas gerações são cada vez mais abertas quanto a estas questões e muito tem mudado nos últimos anos.    

 

Quem são as tuas maiores influências ou inspirações?

As inspirações são muitas e não necessariamente pessoas. Normalmente são vivências, cidades, circunstâncias, memórias, mas também questões mais politizadas como injustiças sociais, as crises migratórias. No fundo, vou escrevendo sobre o que me afeta no meu quotidiano, positiva e negativamente. Mas claro que tenho imensas influências e talvez possa destacar algumas que me marcaram profundamente e com quem tive a oportunidade de trabalhar. Desde logo o Bobby Mcferrin, pela sua capacidade vocal, criatividade e toda uma nova abordagem do canto; Meredith Monk, também pelo seu carater inovador e de cruzamento interdisciplinar; Theo Bleckmann pela sua capacidade e técnica vocal, Gretchen Parlato com a sua definição rítmica, Judy Niemack com a sua enorme vertente pedagógica, entre muitos outros. E claro, também gostaria de ressaltar a importância do José Mário Branco, com quem trabalhei enquanto pertenci ao grupo vocal Canto Nono.

 

O teu álbum anterior foi Boundaries, lançado em 2019, ou seja, antes da pandemia. Este Suspenso foi todo criado durante este período? Como lidaste com estas situações de confinamentos e afins?

Eu costumo dizer que Suspenso foi um bebé não planeado. Tinha acabado de lançar o meu segundo álbum Boundaries em 2019 e, entretanto, entramos numa pandemia que nos deixou sem palcos para pisar. Foi um período muito complicado. Mas no meio desses períodos menos bons encontrei um refúgio na composição. Foi realmente uma forma de me libertar destas paredes que nos confinavam. E Suspenso foi no fundo um trabalho de criação como resistência e em que falo disso mesmo, das dificuldades que todos vivemos neste processo e na capacidade de resiliência que tivemos. Suspenso é a forma que a música toma nesse silêncio, a forma que a música toma nesse isolamento.

 

Daí o título, certo? Foi um período em que todo esteve em suspenso…

Sim, exato. Foi um período com definições de limites temporais e espaciais diluídos por esses confinamentos e daí o título.

 

Tudo menos tu próprio que conseguiste juntar um incrível naipe de músicos nacionais e internacionais. De que forma se proporcionou conseguir juntar tanta gente?

Quando comecei a produzir este trabalho foi claro para mim que este teria uma premissa, que seria empregar o maior número de músicos e conseguir pagá-los (o que nem sempre acontece quando gravamos com músicos amigos). Mas no meio de uma pandemia, em que os músicos ficaram sem grande parte dos seus rendimentos, essa foi uma parte fundamental na construção deste trabalho. Claro que isso só se tornou possível pelo apoio financeiro que obtive através de uma bolsa de criação da DGartes. Ao mesmo tempo também andava com uma vontade de experimentar partilhar a parte da produção musical com um produtor e assim apareceu o António Loureiro, multi-instrumentista, compositor e produtor de São Paulo. Um músico que admiro muito e cuja carreira já vinha a seguir há bastante tempo. Outro músico fundamental neste processo foi o Guillermo Klein que, para além de arranjador de um tema, apadrinhou este projeto e aconselhou-me em inúmeras situações. Tanto o António como o Guillermo eram pessoas que não conhecia pessoalmente na altura, mas que nos fomos aproximando pela música e por amigos em comum. Começamos a idealizar um álbum que tinha a participação de um grande ensemble e aí aparece o Coreto Porta-Jazz, um projeto musical que admiro muito e com quem tenho uma grande proximidade aqui no seio musical da cidade do Porto. Depois à medida que fomos arranjando os temas fomos percebendo que alguns seriam perfeitos para determinados músicos, assim apareceu o David Binney, de quem sou um fervoroso fã há muitos anos, o baixista Frederico Heliodoro, o flautista Alexandre Andrés e ainda o trompetista Rubinho Antunes.

 

E o trabalho foi feito totalmente de forma remota? Sentiste-te confortável nessa situação?

Não totalmente, mas grande parte teve que ser remoto. A pandemia obrigou-nos a isso dadas as interdições de viagens. Desde logo, eu e o António Loureiro trabalhámos via zoom e email durante todo o processo de conceção. Na gravação acabamos por gravar com a minha banda base e o Coreto presencialmente, estando o António a partilhar a sessão de gravação do estúdio cá em Portugal para o estúdio dele no Brasil. Os restantes convidados acabaram por ter que gravar à distância, o que exigiu maior planeamento e coordenação de todo o processo, mas acho que em termos musicais conseguimos obter um resultado muito próximo do que seria ter todos juntos no mesmo espaço. E essa era a nossa motivação. 

 

Em termos puramente estilísticos, que diferenças ou novas abordagens trazes para Suspenso que não existiam nos trabalhos anteriores?

Acho que com cada álbum fui aprendendo um pouco mais de produção musical. É sempre um desafio compor todo um repertório à volta de um conceito e em cada trabalho fui tentando experimentar coisas diferentes. Neste álbum quis trabalhar com diferentes formações, texturas e por isso acabou por ter uma sonoridade mais encorpada com a participação do Coreto Porta-Jazz e dos sopros convidados. O facto de ter trabalhado com um produtor musical que me apoiou todo o processo também acaba por ter interferência nas decisões musicais e estéticas.    

 

Em termos líricos cantas em português e inglês. De que forma surge essa dicotomia na escrita das letras?

Costumo dizer que sou um bocado bipolar porque por vezes sinto que um tema pede uma letra em português, mas outras vezes em inglês. Talvez tenha que ver com a grande influência da língua inglesa no Jazz e dos meus estudos no estrangeiro. Mas para além disto, em qualquer um dos meus trabalhos há temas sem letra porque sinto que esse carater abstrato e da utilização da voz como instrumento é o mais apropriado para determinado tema. Normalmente, no meu processo as letras surgem posteriormente à composição, porque gosto do resultado que daí provem. Mas também já aconteceu surgirem ao mesmo tempo, ou em forma de poema que depois é musicado. A ordem como esta inclusão da letra é feita transforma totalmente os temas e isso é interessantíssimo. Sinto que quando começo pela letra as composições tornam-se mais canções, talvez por isso prefira começar pelo caminho da composição e mais tarde confrontá-la com as palavras.

 

Para além de criador e músico, está envolvido em alguns outros projetos. Queres fazer uma breve resenha das tuas diferenciadas atividades?

Para além desta parte mais performativa, sou professor de canto e ainda trabalho muito com improvisação vocal. Desde 2017 que lidero um Laboratório de Improvisação e Criatividade Cocal – O Círculo da Voz que é um espaço aberto a todos os que gostem de cantar, sejam cantores profissionais, amadores ou de chuveiro. É um espaço de experimentação onde tento incluir abordagens distintas ao canto, baseadas na improvisação vocal. Abordagens essas que desenvolvi através de técnicas que fui aprofundando com os meus estudos com o Bobby Mcferrin, a Rhiannon ou a Meredith Monk.

 

Como está o teu projeto com o músico brasileiro Pedro Iaco? 

No final de 2021 fizemos uma tour por Portugal, mas este ano de 2022 estivemos ambos dedicados às nossas carreiras individuais já que este meu novo álbum acabou por consumir grande parte do meu tempo. Mas em breve espero que tenhamos mais novidades para este duo.

 

Recentemente tiveste a oportunidade de tocar em Madrid, na Sala Clamores. Como correu essa noite?

Madrid foi o último concerto da tour que fiz em septeto com o convidado americano David Binney. Foram concertos muito intensos que tiveram uma grande recetividade. Foi muito gratificante apresentar este meu repertório com este grande saxofonista. E terminar em Madrid foi muito especial e importante para nós. Esperemos voltar em breve!

 

Que outras datas tens agendadas ou previstas para os próximos tempos?

Neste momento estamos a preparar 2023, temos umas tours internacionais agendadas, uma das quais por Espanha e ainda alguns concertos em Portugal. Vão ser umas boas surpresas, mas que ainda não podem ser reveladas. Mas em breve vamos começar essa divulgação e com certeza partilharemos com o Via Nocturna essa agenda. 

 

Obrigado, Manuel. Queres acrescentar mais alguma coisa que não tenha sido abordada?

Obrigado pela excelente entrevista! Um abraço.

Comentários