Entrevista: UHF

 


São 45 anos de carreira ininterrupta, um patamar que não está ao alcance de todos. Ainda por cima quando esses 45 anos estão preenchidos por uma quantidade única de temas intemporais que as gerações passadas, presentes e futuras conhecem e cantam. E a melhor forma de celebrar é outro disco fantástico e cheio de mais um conjunto de canções que se juntam aos seus já icónicos hits. Um conjunto de Novas Cantigas de Bem Dizer que mostram o coletivo almadense na sua melhor forma em muitos anos. Para nós, foi uma honra e um privilégio poder conduzir esta entrevista com o lendário António Manuel Ribeiro.

 

Olá, António, tudo bem? Obrigado pela disponibilidade e deixa-me dizer que é uma verdadeira honra poder fazer esta entrevista. Os UHF celebram 45 anos de carreira ininterrupta, um número não muito fácil de alcançar. Qual é/foi o segredo para tal longevidade?

Eu é que vos agradeço o vosso interesse. Agora, quando essa pergunta se repete, só sei ser sincero e a sinceridade não é amiúde apelativa para o relevo mediático bacoco. Quando nós começámos tudo era difícil, novo e até estranho – quatro anos após a mudança sociopolítica que o 25 de Abril nos trouxe, o rock era apelidado por alguns sectores como ‘música imperialista’. Por outros, significava música que nada tinha a ver com a língua portuguesa. Aliás, havia quem achasse que só ‘fazíamos barulho’, e por isso éramos corridos de garagem em garagem. Foi, nesta caldeirada cultural, que teimámos em continuar, porque é disso que se trata, não desistir, seguir à procura. E cantar na língua de Camões para que todos nos entendessem.

 

E este álbum mostra, na realidade, uma banda cheia de energia e rejuvenescida. De onde vem a vontade, o querer e a inspiração?

Com o tempo e a formação adquiridos fui-me tornando um escritor de canções muito exigente, não escrevo canções patéticas: olho, observo, analiso, tomo posição, revelo-me. O Zé Mário Branco dizia que a ‘cantiga era uma arma’, o que se enquadrava naquele tempo sociológico. Pessoalmente, faço da canção um alerta, seguindo a tradição trovadoresca que levava pelos caminhos do país, em rimas e melodias, os males e a atualidade do reino. Daqui ou do mundo em redor. Cantar o amor e a amizade é (também) uma fonte inesgotável de inspiração.

 

És o único membro fundador ainda presente. Tem sido uma tarefa muito árdua conduzir este barco ao longo do tempo?

Por vezes foi. A meio da década de ’80 do século passado, a entrada da droga dura levou-me quase a desistir da música – a política ativa tentou-me, mas rejeitei a tempo. Tivemos os problemas de muitas bandas da altura, tentei ajudar, mas foi muito complicado equilibrar o barco com músicos e técnicos agarrados à heroína.

 

Ao longo desses 45 anos, devem ter tido momentos altos e baixos, como todas as bandas e como toda a gente, afinal. Se te perguntasse se conseguirias definir um momento para cada um, o que me dirias?

Para o mau, podia repetir a resposta anterior, mas outros existiram. Por exemplo, quando tens um contrato com uma editora e ela te engana nos números das vendas, e aconteceu mais de uma vez. Mas os momentos muito bons superam tudo isso, não foi fácil, mas aguentei, nem sei como, talvez por um desígnio e a minha capacidade de não desistir à primeira, à segunda e à terceira. Um momento bom, de muitos momentos bons: o nosso primeiro disco de prata pelo single Cavalos de Corrida, em 1980, o primeiro do rock português, por mais de 30.000 discos vendidos. Hoje a canção vendeu centenas de milhar e no digital milhões.

 

E também deve ter havido muitas histórias curiosas ou bizarras. Queres partilhar alguma com os nossos leitores?

Vem-me sempre à memória um concerto em Viseu a meio dos anos ‘90. Por motivos do patrocínio do evento, tínhamos de passar por uma discoteca, creio que em Santa Comba Dão, e darmos uma sessão de autógrafos a meio da tarde na matinée do espaço, que estava cheio. Assim fizemos. Mas, a dado momento, observei os cartazes nas paredes da pista e verifiquei que a data estava ‘errada’. Falei com um elemento da organização do concerto presente e assinalei que a data no cartaz devia ‘estar errada’, pois apontava para uma semana mais tarde. Conclusão de uma tarde estranha: a publicidade na cidade e arredores indicava o concerto dos UHF efetivamente para uma semana mais tarde. O concerto aconteceu, subimos a palco, pagaram-nos e tocámos para as cerca de 50/60 pessoas das redondezas que ouviram o ensaio de som à tarde e vieram verificar o que se passava. Era um pavilhão para 5.000 pessoas.

 

Voltando-nos agora para este vosso novo disco. Quando surgiu a vontade de começar a criar novas canções?

Eu estou sempre a escrever, vai acontecendo quando a inspiração me toca. Por isso, para este disco partimos com um lote de quase 80 canções que fomos experimentando e selecionando – era o ano dos 45 sobre o primeiro concerto a 18-11-1978, a data merecia um registo.

 

Porquê a escolha deste título, Novas Canções de Bem Dizer, quando, afinal, alguns dos teus poemas até são, como de costume, aliás, bem mordazes?

A ideia foi essa, virar do avesso o ‘mal dizer’ para ‘bem dizer’, e seguir a tradição do trovador.

 

No entanto, o tema de abertura (Hey! Hey!) ‘Bora Lá parece ter um sentimento autobiográfico. É o que acontece?

É verdade, o ‘Bora Lá é a estória de um grupo de miúdos com uma enorme determinação perante as adversidades. E muita ironia. Aqui não há sorte, há convicção. Quem espera pela sorte sofre amiúde uma desilusão.

 

Há mais alguma letra que tenha esse sentimento biográfico ou pessoal? E que outras temáticas abordas nos teus escritos?

Quando escreves uma canção, sobre a tua experiência pessoal ou visão do mundo, estás a revelar a tua vivência, que é comum à das pessoas que te ouvem. Por vezes, uma canção profundamente íntima encontra eco em muita gente que passou pelo mesmo. Muitas das minhas canções representam pedaços da minha vida.

 

Seja como for, a palavra continua a ser um dos aspetos mais importantes da música dos UHF, não concordas?

Por respeito a mim próprio, ao nosso público e à fantástica herança e património dos poetas portugueses as palavras que canto têm racionalidade e substância.

 

E porque voltaste a uma atitude mais política com O Indigente?

Para que as pessoas não esqueçam, alheadas e aflitas como andam neste momento, quem nos trama a vida. Os azares causas e autores. Mas o disco Porquê?, de 2010, e A Minha Geração, de 2013, também têm uma densa intervenção social. A minha intenção é só uma: acordem e ponham a democracia a funcionar. Lembras-te de Vernáculo (Para um Homem Comum)? O poema foi editado em livro em 2006 e em disco em 2013. Continua atual.

 

Como é que analisas a forma como a palavra é tratada atualmente no contexto musical, seja no rock ou noutros estilos?

Vi o pimba crescer, vi o facilitismo passar a moda, e, curiosamente, estamos de novo num tempo de rimanços abstratos, patéticos até. Há muita gente perdida num sorriso, há sempre um sorriso escancarado para as redes, os jornais digitais, em acordo com a tibieza do que cantam. Há muita gente a miar e pouca gente a morder… Há dias recusei, contra a opinião dos nossos assessores de comunicação, um programa televisivo de grande audiência. Porquê? Dava-me um bom cachet, mas iria contra o modo como encaro a minha vida profissional. Ouçam as nossas canções pelo que valem, não farei de palhacinho para as audiências.

 

Musicalmente, na minha opinião, este álbum tem alguns dos melhores temas da vossa carreira, mas ganha muito com a inclusão dos teclados e órgão analógicos. Quando decidiram que seriam, efetivamente, uma mais-valia para as composições e para o álbum?

Ao longo da nossa vida discográfica utilizámos o Hammond, mas desta vez foi mais incisivo, era a minha ideia para a sonoridade final. Quando acabámos a gravação do (Hey! Hey!) ‘Bora Lá, disse à banda: vai ser o nosso disco mais americano. Por causa da sonoridade.

 

E para esse segmento, convidaram alguns músicos. Queres falar sobre eles e a forma como o seu trabalho foi desenvolvido?

Trabalhámos com três excelentes teclistas, o Manuel Paulo, o Rui Almeida e o Miguel Urbano, que entrou para a nossa equipa. São amigos nossos, e esse é um aspeto muito importante para se criar uma simbiose nos ensaios e depois no estúdio: chama-se cumplicidade, não precisa de muitas palavras.

 

O álbum já está disponível desde outubro. Como têm sido as reações da imprensa e dos fãs?

Já vi escrito que era o melhor disco dos UHF dos últimos 30 anos. Talvez, não sei, só sei que não teria a maturidade suficiente para o escrever há 15/20 atrás. E a venda do vinil disparou. 

 

Desde essa altura, têm tido a oportunidade de apresentar este álbum ao vivo, nomeadamente. Como correram estes eventos?

Temos integrado algumas canções no alinhamento. Estamos a celebrar 45 anos de atividade ininterrupta, os concertos são um Best Of que integram apenas algumas canções novas. Veremos mais para a frente o que iremos fazer.

 

Com uma carreira tão longa, os UHF ainda têm objetivos a atingir ou metas delineadas?

Fazer bem o próximo concerto e arriscar mais em estúdio. Talvez gravar outro disco este ano.

 

Obrigado, António! Deixo-te a oportunidade de enviar uma mensagem para os nossos leitores e para os vossos fãs…

Grato, uma vez mais, por este belo interrogatório. Deixo aos leitores um simples conselho: olhem à volta, escolham, decidam pelo mais difícil, descubram, o que aí vem é a cada vez mais uma submissão insinuante. Com a guerra à mistura, permaneçam atentos. 

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