Entrevista: Fritz Kahn And The Miracles

 

Numa mistura de ciência e espiritualidade, emoção e lógica e numa dança de dualidades que reflete a vida em toda a sua complexidade, surge o projeto liderado por Gonçalo Serra, Fritz Kahn And The Miracles. Com o lançamento de Attila, The Crow, mergulhamos numa nova etapa da sua trilogia, iniciada com Jonah, The Whale e que culminará em Jeremy, The Outlaw, previsto para 2025. Pelo meio, ainda Gunthi, uma compilação de alguns dos seus melhores momentos. Os bichos sempre presentes na narrativa do músico nacional que connosco partilha a visão por trás do novo trabalho, a ligação simbólica dos temas e como cada peça se encaixa numa narrativa maior.

 

Olá, Gonçalo, tudo bem? Como tens passado? Obrigado pela disponibilidade. O que tens feito desde 2021, altura em que conversámos pela última vez?

Sim, está tudo bem, Pedro. É um prazer dar esta entrevista à Via Nocturna, que tanto tem acarinhado este projeto musical que pasme-se: já tem mais de 25 anos. Desde 2021, muita coisa se passou é certo, mas o essencial é que tenho tentado aperfeiçoar-me enquanto compositor, e que tenho reunido cada vez mais um conjunto de músicos à minha volta que me obrigam a superar-me todos os dias, caso do Ruben Alves (produtor, arranjador e pianista), mas também do Miguel Amado, do Mário Delgado, e outros grandes valores da música portuguesa. Este projeto tem uma expressão reduzida na indústria musical (ainda assim, no ano passado, foi ouvido no Spotify em mais de 111 países, com 34.000 streams) mas pelo menos, garantiu o carinho dos seus pares.

 

O teu novo EP, Attila, The Crow, foi recentemente lançado. Podes compartilhar o conceito por trás deste trabalho e o que te inspirou durante o processo de criação?

O conceito é muito simples. Apercebi-me que uma das minhas técnicas de sobrevivência é roubar momentos felizes, brilhantes se quiseres. Ora o Corvo também rouba coisas brilhantes, são irresistíveis para ele. Como este é um corvo muito especial, dei-lhe o nome de Attila, o famoso bárbaro que saqueou Roma, pilhando tudo à sua passagem. Talvez o nome Attila, seja o mais profundo e intrigante (mais que o corvo propriamente dito) neste trabalho, conceptualmente falando.

 

Este EP faz parte de uma trilogia, precedido por Jonah, The Whale e a ser seguido por Jeremy, The Outlaw em 2025. De que forma estes três trabalhos se interligam em termos de narrativa e temática?

Todo o projeto Fritz Kahn And The Miracles é marcadamente conceptual. Começou por ser a tentativa de olhar o mundo através de uma criança órfã, à boa maneira de Dickens, e tentar com isso, encontrar momentos de magia numa realidade por vezes crua, e mesmo bruta e agreste. Este menino órfão (o Fritz Kahn) gosta muito de bichos. Como tal Jonah, The Whale era uma baleia. Attila, The Crow é um corvo. E Jeremy, The Outlaw será um ratinho. Porquê bichos? Bom, em primeiro lugar porque este órfão não tem grandes amigos, e decidiu fazer dos bichos os seus amigos. Filosoficamente falando, é a ideia de que todos os seres vivos, incluindo os humanos, são bichos. A ideia é continuar a lançar álbuns que, conceptualmente, façam parte do imaginário de uma criança. Julgo que os bichos, alguns mais do que outros, fazem muito parte do imaginário das crianças. Basta ver que os desenhos animados ou os contos infantis estão povoados de bichos. Poderia dizer muito mais sobre este órfão, que vive eternamente na urgência de ser adulto, sem conseguir, fisicamente, emocionalmente, deixar de ser criança. Isso é bom, e é mau. Mais uma dualidade, portanto. Este projeto musical aprecia muito as dualidades, as contradições, e até os paradoxos, da vida.

 

Em 2021 referias que a música é um veículo de salvação emocional e espiritual para ti. Essa perspetiva influenciou a composição de Attila, The Crow?

Sim, com certeza. A música salva-me, e salva os outros. É esta ideia que nos salvamos uns aos outros que preside espiritualmente a toda a obra de Fritz Kahn And The Miracles. Quem salva uma pessoa, salva a humanidade, como disse alguém. Neste EP Attila, The Crow está presente a ideia de salvação através do resgate, ou do roubo, de todos os momentos felizes que apanhamos pela frente. A intenção é focarmo-nos intensamente naquilo que a vida traz de bom, e sermos autênticos saqueadores de tudo o que é mágico e brilhante. Algures por aí existe uma pepita emocional, que nos alimenta nas fases de míngua, privação e solidão, como tantas vezes somos obrigados a atravessar.

 

Nessa mesma entrevista, mencionaste que o nome Fritz Kahn representa a ironia entre ciência e espiritualidade. Ainda sentes essa dualidade quando compões?

Sim, tenho fé na lógica. E lógica na fé. Não sou teólogo, nem sou cientista. Mas julgo que, por exemplo, o senso comum é uma espécie de lógica, na qual temos muito fé. Ou uma espécie de fé, na qual temos muito lógica. Fritz Kahn And The Miracles segue essa dualidade, porque, pelo menos no mundo ocidental em que vivemos, é nessa dualidade que a vida acontece. E eu, e o pequeno Fritz, queremos muito estar vivos, realmente vivos. Queremos viver cada momento como se fosse o último. Um desses momentos, será efetivamente, o último. Espero que seja um pôr do sol. Faria sentido, acho eu, que o último momento fosse um pôr do sol.

 

Ainda antes de Attila, The Crown lançaste Gunthi que reúne alguns temas de Jonah, The Wahle, os singles lançados nos últimos 2-3 anos, além de faixas inéditas. O que te motivou a compilar estas músicas agora, e como selecionaste as faixas incluídas?

Gunthi tem como conceito um cavalo, que recebeu o nome de Gunthi, que significa “combate” em germânico antigo. Compilei estas músicas para as oferecer à minha comunidade (ao Entroncamento). Nesse sentido mandei fazer uma edição física deste trabalho musical (em formato CD), e tenho oferecido por aí, aos meus amigos e conhecidos. Trata-se do melhor que fiz até à data. Gostaria que as pessoas recordassem de mim esse ser instintivo, forte e lutador (que nem um cavalo chamado “combate” ou Gunthi) que teima em escrever canções de fé, ou pelo menos esperança, quando tudo parece perdido. A seleção das faixas teria de incluir necessariamente aqueles que considero os mais bem conseguidos em termos de composição. Mas também foi obrigatório incluir alguns temas novos. Talvez tivesse feito a seleção de forma diferente hoje. Mas quis incluir os mais representativos da minha obra. Finalmente, quis marcar um fim de ciclo com o Tiago Machado (arranjador e produtor), com quem trabalhei durante 5 anos. Foi também um reconhecimento do seu trabalho, tanto que todas as músicas, exceto Caminero (faixa invisível) foram assinadas por ele, e isso é bem explícito na contra capa do CD.

 

Enchantment Under The Sea é dedicada à tua mão e Vertigo ao teu pai. Poderias compartilhar mais sobre a inspiração por trás destas músicas e o que elas representam para ti e para a tua família?

A música dedicada á minha mãe (Enchantment Under The Sea) e ao meu pai (Vertigo) são das melhores que já compus. Quis eternizá-los em canção e letra, não sei se consegui, mas tentei fazer justiça à natural importância que eles tiveram para mim. O meu pai já faleceu, em 1997, foi, portanto, uma canção de despedida tardia. Uma forma de finalmente fazer o luto, da pessoa que mais orgulho teve em mim, em toda a minha vida. Quanto à minha mãe, é uma música muito bonita, representando talvez a enorme capacidade de resistência e força de viver da minha mãe. Não compreendendo de onde lhe vem tanta energia, tentei encerrar nesta canção esse mistério.

 

Também America teve recentemente algum destaque. Que mensagem pretendes transmitir com essa canção, e como se encaixa no contexto atual?

A música America fala do velho sonho americano, entretanto caído em desgraça pelas correntes de extrema-esquerda woke, e as correntes neofascistas de extrema-direita (do tipo Trump). Essa América, entretanto, extinta, entreteve-me, e ensinou-me muito, sobre relações humanas, sobre sonhos, sobre vencer na vida, sobre resistência, na imensa cultura que me proporcionou de livros, música, filmes. É uma música de gratidão.

 

Gunthi encerra com Caminero, uma canção em espanhol, que contrasta com o restante da sua discografia predominantemente em inglês. O que te levou a escolher o espanhol para esta composição específica?

A resposta é “Não sei”. Tenho uma relação um pouco religiosa com a música. Acredito que as composições me são oferecidas por Deus, ou pelo Divino. Um dia apareceu-me, e foi uma única vez, essa canção em espanhol. Por me parecer bonita, e contra corrente, decidi gravá-la e publicá-la. Penso que não repetirei a graça. Em todo o caso, para mim o mais importante é a melodia, a música propriamente dita. Por isso mesmo, poderei cantar em espanhol, português, chinês, japonês ou inglês. Não é o mais importante, a meu ver.

 

E foi por isso que ela surge como uma faixa escondida ou invisível, como a chamas?

Surge como faixa invisível por respeito ao meu antigo produtor, arranjador e pianista, Tiago Machado. Num trabalho que era uma seleção das minhas melhores músicas, não podia deixar de incluir o Caminero. Querendo eu assinalar, também, 5 anos de trabalho exclusivo com o Tiago, pareceu-me respeitoso e justo, tornar invisível a faixa que foi assinada na produção e arranjos, pelo Ruben Alves.

 

Com Jeremy, The Outlaw previsto para 2025, o que podem os fãs esperar em termos de evolução sonora e temática?

Jeremy, The Outlaw, o próximo EP de Fritz Kahn And The Miracles, com quatro novas canções, é uma viagem sonora e poética ao coração da resistência humana. Inspirado pela luta silenciosa daqueles que, muitas vezes, permanecem à margem da sociedade, o EP apresenta uma reflexão sobre a dignidade e a liberdade, temas essenciais que atravessam a história de quem resiste sem ser visto. O conceito por trás deste trabalho é profundo e multifacetado, explorando o lugar dos “invisíveis” e das suas batalhas diárias contra forças que os oprimem, seja a opressão política, social, económica ou pessoal. Este EP revela uma história de persistência, não pela promessa de uma vitória grandiosa, mas pela simples razão de que a desistência nunca é uma opção. Inspirado na figura do "outlaw", um foragido que desafia as normas estabelecidas, Jeremy, The Outlaw coloca a jornada interior como o verdadeiro campo de batalha. O protagonista, Jeremy, representa todos aqueles que, mesmo cheios de medo como um ratinho, se mantêm firmes e dignos, mesmo sem as ferramentas necessárias para lutar. A sua resistência é silenciosa, mas cheia de significado – uma luta contínua pela preservação dos seus sonhos, da sua identidade e da sua liberdade interior. Ao longo deste EP, as letras desenham uma paisagem emocional onde a busca por um lar, por uma identidade, por um propósito maior atravessa cada canção. As metáforas poéticas que percorrem as músicas falam de um mundo onde os sonhos são fundamentais, mas também são frequentemente ameaçados pela realidade esmagadora. Jeremy, The Outlaw não é apenas sobre o peso da luta, mas também sobre a força indomável de quem se recusa a desistir. No centro do EP está a ideia de que a verdadeira resistência não reside apenas na ação visível, mas na capacidade de sonhar e de contar histórias. São as histórias – tanto as nossas como as dos outros – que nos sustentam, que nos permitem continuar a caminhar, a lutar e a viver. Assim, Jeremy, The Outlaw não é apenas uma música de resistência, mas uma celebração da memória, da imaginação e da esperança, criando um espaço para todos aqueles que, embora invisíveis, carregam dentro de si a força dos que nunca desistem. A metáfora do ratinho, dentro do conceito geral de Jeremy, The Outlaw, pode ser entendida como uma representação da fragilidade, da vulnerabilidade e da resiliência de quem vive à margem das estruturas de poder e da visibilidade social. O ratinho é uma figura pequena, muitas vezes invisível aos olhos da sociedade, mas que, apesar disso, persiste. Ele é um ser que não escolhe o seu destino, mas luta pela sobrevivência, adaptando-se às condições adversas que o cercam. Neste contexto, o ratinho pode simbolizar todos aqueles que, como os "outlaws" do EP, enfrentam desafios gigantescos sem as ferramentas para mudar sua realidade, mas que, de alguma forma, resistem. Ele é uma metáfora para a luta silenciosa daqueles que não se encaixam nas normas ou expetativas sociais, e que, apesar da sua condição de fragilidade, possuem uma força interior que os mantém em movimento. A pequena criatura representa também a resistência nas suas formas mais discretas e subtis. Ele não é visto nem reconhecido como herói ou figura de poder, mas é alguém que, na sua persistência diária, simboliza a dignidade de quem não tem nada a perder, mas segue em frente, apesar de tudo. Este ratinho não desiste porque sabe que a sua luta, embora silenciosa, tem um propósito: a preservação de sua liberdade e identidade. Ao integrar o ratinho dentro do conceito de Jeremy, The Outlaw, a metáfora ressalta a importância de cada ser – por mais pequeno que seja – na grande tapeçaria da luta humana pela dignidade e pela liberdade. O ratinho, com sua fragilidade, torna-se uma figura de resistência não pela força física, mas pela sua capacidade de continuar, de persistir na adversidade, de viver e de sonhar, mesmo quando o mundo parece não lhe dar espaço. Neste sentido, o ratinho é a personificação do espírito de Jeremy: invisível, vulnerável, mas com uma dignidade que se mantém intacta através da luta, mesmo quando o resultado da batalha parece incerto. A metáfora amplia a visão de resistência, tornando-a mais acessível, humana e profundamente ligada ao conceito do EP. Jeremy leva também emprestado as caraterísticas de um personagem de um famoso tema de Jorge Palma: “Jeremias, o Fora da Lei”, de quem o compositor é um admirador confesso.

 

Tens planos para apresentações ao vivo ou tournée para promover Attila, The Crow e Gunthi? Se sim, podes compartilhar alguns detalhes?

Não temos concertos marcados, na verdade tem sido a principal dificuldade deste projeto, que apesar do seu inegável valor, tem tido dificuldade em enquadrar-se dentro do mercado. O mercado procura ritmos, e nós temos para oferecer harmonias e melodias. Julgo que é esse o problema. Em todo o caso, deixo aqui o meu email, para quem deseje ter-nos mais perto do coração: serras.goncalo@gmail.com

 

Como vês a evolução do projeto Fritz Kahn And The Miracles nos próximos anos? Há novas direções ou colaborações que gostasses de explorar?

Gostava de explorar o mercado internacional, sobretudo o mercado inglês, uma vez que canto em inglês. Para esse efeito, já faço parte do catálogo da Black Arts, que inclui Bryan Adams, ou Oasis, para terem uma noção da sua grandeza. Foi a maior conquista do último ano. Eles têm ajudado a promover este projeto em Inglaterra. E julgo que será essa a direção geral deste projeto, a internacionalização. Como já disse, somos ouvidos em 111 países, o que é um enorme orgulho para um português, e para um Entroncamentense.

 

Obrigado pela entrevista, Gonçalo. Queres deixar alguma mensagem final?

Que estão à espera para irem ouvir Fritz Kahn And The Miracles? (Risos). Abraço a todos, e já agora um feliz 2025.

Comentários

DISCO DO ANO 2024 - Categoria Hard Rock (Internacional): Κυκεώνας (KHIRKI) (Venerate Industries)

MÚSICA DA SEMANA #04/2025 VN2000: On The Verge Of Becoming A Shadow (SACRED) (Stormspell Records)