Entrevista: Democrash

 

Com uma visão artística profundamente pessoal, politizada e visceral, os Democrash continuam a desconstruir conceitos sociais e existenciais com uma sonoridade imprevisível e livre de amarras. No seu novo álbum, Important People, a distopia volta a ser matéria de criação, mas agora ainda mais enraizada no colapso, no fundo como um espelho fragmentado do nosso tempo e da nossa identidade. Para aprofundar o universo por detrás deste disco e da banda, conversámos com Octávio Nunes, letrista e voz principal desta inquieta maquinaria sonora.

 

Olá, Octávio, tudo bem? Obrigado pela disponibilidade. Important People, o vosso trabalho mais recente, parece levar ainda mais longe o vosso universo distópico e confrontacional. Como é que nasceu este conceito?

O universo distópico e confrontacional, e atrevo-me a acrescentar, pessoal e confessional, está estreitamente ligado às minhas preocupações, dramas e traumas, por isso é natural que, sendo o letrista da banda, elas se reflitam nos textos. O conceito Important People acompanha-me há muito (esta letra foi escrita em 1996...). Tem a ver com uma questão fundamental, para mim: o valor de alguém ou de alguma obra é intrínseco ou é apenas o resultado da validação dos outros? Quem é que decide se o que eu faço ou que eu crio é uma obra de arte ou não? E a resposta é os Important People... as pessoas que se validam entre elas e que excluem todos os que eles não consideram como artistas ou criadores. O universo Democrash é distópico e confrontacional porque também reflete as questões do colapso, da 6ª extinção (da humanidade) mas sem cair numa atitude catastrofista, antes aceitando a inevitabilidade da coisa e buscando, no tempo que ainda possamos ter, individualmente ou como humanidade, o gozo pleno da vida.       

 

E, com este álbum, mergulham ainda mais nas estruturas invisíveis da identidade e da realidade. Que motivações estiveram por trás desta opção?

As letras são pessoais e refletem sempre questões autobiográficas ou preocupações insolúveis; a identidade é nossa mesmo ou somos apenas o produto do que os outros acham de nós e a forma como nos vêm? E o que dizer da realidade? Como dizíamos no nosso primeiro trabalho, no tema State Of The Nation: “Nothing's really there, when I’m not looking...”

 

Do ponto de vista musical, mantêm a vossa abordagem profundamente eclética, cruzando punk, krautrock, garage e eletrónica. Como é trabalhada essa mistura de géneros em estúdio para que o resultado final soe coeso e, ao mesmo tempo, imprevisível?

Completamente eclética; a mistura surge tão naturalmente que nem damos por ela e de onde vêm as influências; quando chegamos a estúdio as músicas já vão (quase) todas suficientemente rodadas ao vivo e ensaiadas, por isso as bases normalmente vão pré-cozinhadas. Depois no estúdio e a seguir pomos apenas alguns temperos.

 

Olhando para trás, desde o EP 909democrashdrug até este segundo LP, que evolução mais vos orgulha enquanto banda? E o que esperam que venha a seguir para os Democrash?

Uma coisa que pessoalmente me deixa particularmente feliz é quando, no fim dum concerto, alguém que não conheço, e sem desprimor para os amigos e fãs que nos acompanham nestes 11 anos, de quem gostamos muito e que são mesmo muito importantes para nós, vem ter connosco e diz: “nunca vos tinha ouvido, mas alguém me disse que não podia perder e vim ver e foi do c...###”. No concerto de lançamento do disco aconteceu isso e a pessoa que veio ver disse-me: “eu ia ficar muito triste se soubesse que tinha falhado este concerto...”. Não sei o que vem a seguir, mas se vier alguma coisa (e estão muitas na calha) não vai ser nada do que têm ouvido...

 

Cada faixa é descrita como um episódio do colapso moderno. Poderias explicar melhor como articularam essa narrativa no alinhamento do disco? Há uma ordem ou fio condutor propositado?

Nem todos os temas são sobre o colapso moderno, alguns são sobre colapso pessoal ou das relações... mas sim, em certa medida são todos sobre alguma forma de colapso; não há nenhum fio condutor, nem nenhuma ordem específica.

 

O single The Concept Of Clothing aborda a pertença, enquanto o tema-título questiona o estatuto social. Em que medida estas reflexões surgem de experiências pessoais ou de observações do mundo atual?

Completamente de experiências pessoais e de observações do mundo atual; na realidade The Concept Of Clothing e Important People falam de aspetos da mesma coisa: somos intrinsecamente alguma coisa ou só dependemos da validação dos outros?

 

Um dos temas do álbum, Le Toit de la Maison, é cantado em francês. O que motivou essa escolha linguística e que mensagem pretendem transmitir com essa faixa em particular?

A escolha linguística foi apenas uma experiência, para não cantar sempre em inglês... e também porque a música, na sua estrutura original vai buscar influências a Ça Planne Pour Moi de Plastic Bertrand e Wake Up The Nation do Paul Weller (aqui na parte “...the cracks from the pavement...” que corresponde ao “...le craquement du trotoir...”. Mas, basicamente, o Le Toit de la Maison é um tema sobre claustrofobia sentimental, um pesadelo em que nós somos o teto da casa e esmagamos os que estão dentro dela.

 

Este álbum conta com um número maior de convidados do que o anterior. Como surgiu essa vontade de abrir o disco a outras vozes e sonoridades? Que impacto teve isso na vossa abordagem em estúdio?

Acho que não houve uma grande diferença em termos de número de convidados, uma vez que em todos os discos houve sempre convidados especiais: no primeiro disco o João Nunes fez a sua estreia nas eletrónicas e desde aí tem tocado em todos os discos (neste último foi, uma vez mais, absolutamente essencial para definir o som final do disco e da banda); no 909democrashdrug convidámos, além do João Nunes, também o Rodrigo Amado (sax) e o Rodrigo Noronha (didgeridoo); no Propelled tivemos a Mimi Tavares a fazer vozes; e neste último disco convidámos o Hernâni Faustino (contrabaixo/violoncelo) para tocar no Important People, o Victor Torpedo para produzir e tocar guitarras no Hacked e no Le Toit de la Maison e ainda a Helena Veludo, a Olga Ramos, a Madalena Martins e a Pika para fazerem vozes numa data de músicas (Important People, Tourists, Love Is Not Forever...).

 

O álbum foi gravado ao longo de mais de um ano e meio. Que desafios e descobertas enfrentaram nesse processo tão prolongado? Sentiram que o tempo vos ajudou a maturar ideias ou, pelo contrário, tornou mais difícil fechar as composições?

O tempo que demorou, a mim pessoalmente, ajudou-me a cansar dos temas que estão no disco e querer fazer músicas novas o mais rápido possível... mas é só a minha opinião.

 

Tendo em conta o reconhecimento internacional que já receberam, nomeadamente com o apoio do Paul Cox e da Artrocker, equacionam continuar a investir em levar os Democrash para fora de portas? Que feedback têm tido lá fora?

O reconhecimento, nacional ou internacional, é muito relativo: são na maior parte bons feedbacks de pessoas que gostam do nosso som e ouvem as nossas letras, mas este meio é demasiado pequeno e as hipóteses de “furar” são reduzidas... resta-nos o reconhecimento póstumo (risos). O feedback lá fora tem sido bom, mas há demasiados obstáculos para conseguirmos ir lá para fora: por exemplo, para o Reino Unido, de onde é o Paul Cox, desde o Brexit que se tornou praticamente incomportável ir lá tocar...

 

Os Democrash sempre foram descritos como uma banda altamente performativa ao vivo. De que forma essas experiências de palco influenciaram a construção sonora e estética de Important People?

Acho que a parte performativa em nada influenciou a composição, a maior parte das vezes os outros elementos da banda não sabem o que eu vou fazer ao vivo...

 

Já que falamos disso, em termos de palco, o que têm planeado para apresentação ao vivo deste álbum?

Neste momento apenas temos um concerto marcado num festival em Figueira de Lorvão, no dia 30 de agosto.

 

Para terminar, que mensagem gostarias de transmitir aos vossos fãs e aos nossos leitores?

Se tiverem uma banda toquem aquilo que lhes der na gana, sem barreiras, sem imitações, sem cedências e digam o que for importante, nestes tempos em que não se diz ou não se pode dizer o que se pensa. 

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