Entrevista: O Gajo

 

Desde a estreia com Longe do Chão em 2017, João Morais, aka O Gajo, tem vindo a moldar um percurso artístico profundamente ligado à viola campaniça, mas sempre aberto a novas sonoridades e colaborações. Sete anos e vários registos depois, chega Trovoada, um álbum que carrega uma paleta instrumental alargada que junta sanfonas, flautas, cavaquinhos, gaitas de foles e adufes. Distante de fórmulas fixas, mais uma vez O Gajo abraça a reinvenção e transforma a tradição num terreno fértil para experimentação e diálogo. Voltamos a conversar com o João Morais para explorar este álbum e o que ainda está para vir.

 

Olá, João, tudo bem? Obrigado, mais uma vez, pela disponibilidade. Trovoada é o teu novo disco e traz uma série de novidades. Mas, a verdade é que desde a tua estreia em 2017 com Longe do Chão, tens vindo sempre a adicionar algo de novo a cada álbum. Este caminho foi desde o início assim planeado ou tem vindo a ser construído a pouco e pouco?

Este projeto começou da forma mais simples possível, apenas com a viola campaniça, mas sempre com muita abertura para o que o futuro pudesse trazer. Sem planos definidos, mas disposto a agarrar todas as oportunidades que pudessem fazer florescer o som que estava a explorar na Viola. Ao fim destes quase 10 anos, já muita coisa aconteceu e estou muito satisfeito com a diversidade de atmosferas sonoras que já fazem parte do repertório d’O GAJO.

 

O título Trovoada sugere intensidade e turbulência. Que temas ou sentimentos procuraste explorar neste álbum? 

Infelizmente a guerra entrou na nossa rotina diária e passámos a ouvir esse som destrutivo como pano de fundo nas notícias do telejornal. Parece uma trovoada que se está a aproximar aos poucos e vamos estando cada vez mais envolvidos nela. O Mundo está à beira de um conflito mais global e este disco é composto com um sentimento de frustração e descrença muito grandes.

 

Em Trovoada, há uma clara expansão sonora com a introdução de instrumentos como sanfonas, flautas, cavaquinhos, gaitas de foles e adufes. O que te motivou a incorporar estes instrumentos e como foi o processo de integração com a viola campaniça?

Em 2023 cruzei-me com o João Martins e o seu Grupo de Sanfonas da Ponte Velha e o que fizemos em conjunto, deixou-me com muita vontade de voltar a esse encontro e expandir um pouco mais essa relação. O João e a Diana para além das sanfonas trouxeram o cavaquinho a gaita de foles as flautas e os adufes, foram tudo extras! A integração da Viola Campaniça com os vários instrumentos parte muito da nossa capacidade de sermos criativos e disponíveis, sem preconceitos ou regras intransponíveis, o resto acontece naturalmente.

 

Como decorreu o processo da escolha dos músicos que te acompanham neste disco?

O Isaac tinha vindo substituir o José Salgueiro num concerto há uns anos atrás, mas demo-nos muito bem e ele é um super baterista, o Francesco no baixo já conhecia há muitos anos e sempre o vi tocar com projetos que estavam dentro de um certo estilo que se enquadravam com o que queria fazer e por isso marquei um encontro e fiz-lhe esta proposta que ele aceitou. O João e a Diana estavam juntos no Grupo das Sanfonas como contei na resposta anterior. Quando lhes fiz o convite, aceitaram prontamente.

 

Com esta formação, poderemos dizer que O Gajo passou de um projeto individual a uma verdadeira banda?

Sim, este disco e os planos que tenho para a frente, contam com um grupo fixo de músicos. A minha ideia será tocar sempre com eles pois para a além de serem excelentes músicos são também excelentes pessoas.

 

Este álbum marca também o retorno da palavra cantada de forma mais sustentada e não apenas pontualmente. O que te levou a reintroduzir a voz neste projeto e de que forma isso influenciou a composição das músicas? 

Essa decisão aparece já quase no final da composição do disco. Tinha dúvidas, pois cantar numa banda de punk rock como já tinha feito, é bastante diferente do que cantar num projeto acústico. Fui sentindo que o disco precisava de passar uma mensagem clara em relação ao que sinto que se passa no mundo e nesse aspeto as letras e a voz ajudam muito. Voltei ao processo de escrita e de leitura que gosto de manter presentes pois também me ajudam a mim a clarificar os meus posicionamentos. 

 

E, na realidade, já tínhamos saudades da beleza e profundidade dos teus poemas e suponho que tenhas continuado a escrever desde os tempos dos Gazua. Mas estes poemas foram escritos propositadamente para Trovoada?

De certa forma, estou sempre a apontar ideias num pequeno bloco de apontamentos que trago comigo. Nunca se sabe quando chega uma boa ideia e é bom termos onde apontar. Depois dos Gazua fiz uma pausa na escrita pois é de longe a parte mais dolorosa do processo. Agora volto com vontade redobrada pois o mundo está virado do avesso e seguindo o exemplo de algumas das minhas referências como o José Afonso ou o José Mário Branco, a música pode ser uma arma ou um alerta, ou apenas uma forma de expurgarmos a nossa frustração. Só a letra do Velho Tocador não foi feita para este disco pois já existia desde um projeto anterior, mas que não tinha sido ainda usada.

 

O que também se nota é uma redução na duração média das faixas, o que torna os temas muito mais objetivos. Foi uma decisão consciente? Qual o objetivo por trás desta escolha?

Essa parte, eu diria ser o departamento do produtor que guiou toda a gravação do disco, o Luís Varatojo. O disco que eu lhe entreguei antes de irmos para estúdio era outro. A banda esteve uma semana num espaço a preparar a pré-produção do disco que depois seguiria para o Varatojo por pistas para ele poder dar o seu contributo de forma a termos um disco mais objetivo, com menos “gorduras”. Ele fez a sua remontarem das músicas e entregou-nos um disco com quase metade do tempo de música. Foi preciso algum tempo para nos adaptarmos à nova versão das músicas, mas percebemos logo que a nova versão era de facto mais aquilo que procurávamos. Fizemos depois alguns ensaios com o Luís Varatojo ao leme e seguimos para estúdio onde tudo correu de forma impecável.

 

Em suma, poderemos dizer que as composições em Trovoada misturam elementos de fado, música tradicional, elementos mouriscos e até algum punk rock. Foi fácil equilibrar estas orientações distintas para criar um som coeso e único? 

Sim, há um cheirinho disso tudo neste disco e com certeza ainda de outras coisas mais. A forma como estes diferentes estilos se interligam, está diretamente ligado à forma como nos libertamos de preconceitos e regras. Abertura total! Tenho a convicção que se nos entregarmos de corpo e alma ao que tocamos, seja que estilo ou mistura for, o que daí resulta, será sempre algo cheio de corpo e de alma também.

 

Como vimos, na instrumentação, há muito mais gente a colaborar contigo. E na criação? Também acontece isso ou continuas a trabalhar em solitário?

Os primeiros passos da composição das músicas são dados a solo. Quero que este projeto mantenha o meu cunho criativo, mas depois de semeada a ideia e de termos um alicerce consistente, a música só floresce com a introdução dos arranjos de outros músicos. No final de cada música, gosto que todos nós possamos identificar com o resultado.

 

Como decorreu o processo de gravação de Trovoada? Houve alguma particularidade ou desafio técnico associado à gravação dos novos instrumentos que introduziste neste trabalho?

Acho, modéstia à parte, que soube escolher muito bem a equipa, o estúdio e os músicos. Correu tudo muito bem pois a energia foi sempre muito boa. A entrega e dedicação foram sempre elevadas e quando assim é, tudo se torna fácil e divertido como deve ser. Houve desafios, mas que foram sendo superados através de novas ideias e de conversas esclarecedoras. Tem de haver uma boa relação de equilíbrio entre o gozo que tiramos em tocar e o profissionalismo com que o fazemos e isso esteve sempre bem equilibrado. Talvez na voz eu sinta que há ainda um caminho a percorrer, mas tudo faz parte de um processo dinâmico e evolutivo. O próximo disco será com certeza melhor.

 

Manténs alguma margem para a improvisação durante a gravação ou chegas ao estúdio com tudo já bem definido? Houve alguma faixa que tenha ganho vida de forma inesperada durante esse processo?

As músicas vão para estúdio já estruturadas, mas sempre abertas a alguma nova ideia que possa surgir. Neste disco houve vários momentos em que as músicas viravam um pouco o seu rumo por causa da introdução de alguma novidade. Gosto de manter o “atelier criativo” aberto e que possamos mexer nas músicas durante todo o processo. Só fechamos tudo à chave na masterização.

 

Que papel teve o Luís Varatojo em todo esse processo?

O papel do Luís Varatojo foi muito substancial. Ele entrou no nosso “autocarro”, pegou no volante e fez uma curva apertada com uma longa derrapagem e lá seguimos noutra direção até ao destino final sempre com ele ao volante. Fez-nos olhar para as músicas por outros ângulos e foi fazendo alterações defendendo sempre bem os seus argumentos. Foi um trabalho muito profissional e muito sensível. Foi muito honesto na sua entrega e por isso não houve uma única discussão acesa sobre qualquer apontamento, houve apenas trocas de opiniões. Se escolhemos alguém que respeitamos e que valorizamos para este papel de produtor, não faz sentido depois andarmos a contrariar as suas ideias. No final o disco será assinado por ele também.

 

O álbum foi recentemente premiado nos Iberian Festival Awards 2024 pela Fundação INATEL. Como recebeste este reconhecimento? 

O prémio INATEL foi-me entregue enquanto artista. Foi entregue ao GAJO enquanto projeto pela sua inovação na música popular. O resultado desse prémio, para além do capital simbólico, foi uma residência artística de uma semana num espaço do INATEL e foi esse o ponto de partida para a gravação deste Trovoada, ou seja, não foi o disco que ganhou o prémio.

 

Depois da tua colaboração com Ricardo Vignini, e de diversos espetáculos pelo Brasil, consideras levar a tua música, profundamente enraizada na tradição portuguesa, a palcos internacionais em outras latitudes?

Sem dúvida, neste momento essa é uma prioridade minha. Estou a trabalhar para tentar que 2026 seja um ano de possibilidades fora de portas, vamos ver o que aparece. 2025 começou com 3 apresentações no Canadá, depois passei pelo Luxemburgo e em agosto deste ano rumamos ao Japão para 2 concertos.

 

Peço desculpa, João, mas torna-se inevitável falar dos Gazua, ainda por cima porque recentemente realizaram uma apresentação ao vivo. Como foi essa experiência e que significado teve para ti revisitar esse capítulo da tua carreira?

Estar com o Paulinho e o JP em palco é como reunir a família e podermos reafirmar pontos de vista que partilhamos. É também excelente reunir de novo com muitos amigos e seguidores dos Gazua que fazem questão de aparecer e cantar connosco algumas músicas. Tenho muito orgulho no trabalho que fizemos e será sempre importante para mim voltar a esse capítulo. Tenho de agradecer à Anti-Corpos pela edição em vinil de uma compilação de músicas dos Gazua que passa pelos 5 discos da banda.

 

Há planos ou discussões em andamento sobre um possível regresso mais permanente dos Gazua? O que podes partilhar connosco sobre isso? 

É sempre com muito gosto que vou para essa parte do passado, pois tenho muito orgulho no que foi feito, mas para mim não passa disso mesmo, uma visita ao passado. Os Gazua já não são presente nem futuro. Não me parece que os Gazua possam vir a fazer mais do que umas pontuais visitas ao passado e ao seu repertório. A minha postura crítica e interventiva mantém-se completamente presente neste meu novo projeto O Gajo e por isso não sinto necessidade de trazer os Gazua para os dias de hoje. Portugal não tem circuito nem interesse nesse tipo de projeto e é muito frustrante tocares 5 ou 6 vezes num ano e mesmo assim para uma audiência reduzida. Se somos emissores de uma mensagem, temos de ser sensíveis à existência de recetores. Se não sentes essa resposta, mais vale mudares a forma como emites a mensagem. 

 

Voltando a O Gajo, ainda há alguma via que não tenha sido explorada e na qual já estejas a vislumbrar um possível caminho para um próximo trabalho?

Tantas vias por explorar… mesmo muitas! Já sei para onde quero ir num próximo disco, mas nesta fase do processo, estou apenas a juntar ingredientes, ainda não liguei o lume…

 

Em termos de palco, o que tens planeado em termos de apresentação ao vivo deste álbum?

Fizemos 2 concertos no Carlos Paredes em Benfica, estivemos no Festival Islâmico, no Festival MED, no Festival MAIA Folk, nas Noites no Largo do Pelourinho em Alverca, vamos ao Japão e temos ainda a Fortaleza de Santiago em Sesimbra em agosto. Depois passamos pela Mealhada, Fólio em Óbidos, Festival internacional de Guitarra de Santo Tirso, Instrumensal em Coimbra…, por aí… Espero que surjam mais oportunidades. Em 2026 o projeto faz 10 anos e já estamos a trabalhar nas apresentações de aniversário. 

 

Para terminar, que mensagem gostarias de transmitir aos teus fãs e aos nossos leitores?

Sejam críticos, instruam-se para poderem perceber a diferença entre a realidade e o populismo. O mundo está neste momento repleto de ditadores em estágio, prontos para tomar conta da nossa liberdade. O capitalismo tem pele de ovelha, mas é um lobo que nos quer devorar. Os principais perigos à nossa volta vestem fato e gravata e apontam as culpas a pessoas simples e inocentes como fazem todos os cobardes criminosos.  

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