Ao
longo da sua carreira, Rogério Charraz tem construído uma identidade muito
própria no panorama musical português. Depois de obras marcantes como A Chave, O Coreto ou Reunião de Condomínio,
o cantor regressa agora com Anónimos de Abril, um projeto singular que
junta livro e disco, dando voz às histórias silenciadas de mulheres e homens
comuns que foram fundamentais para a resistência e para a conquista da
Liberdade. Mais do que celebrar a Revolução dos Cravos, este trabalho procura
resgatar memórias, homenagear heróis esquecidos e lembrar às gerações nascidas
em democracia o preço e o valor da liberdade.
Olá, Rogério, tudo bem?
Mais uma vez, obrigado pela disponibilidade, desta vez para falarmos da tua
nova obra Anónimos de Abril. Como nasceu esta ideia de cruzar livro e
disco num só projeto? Foi algo pensado desde início como um todo ou surgiu de
forma orgânica?
Olá, Pedro, sempre um gosto falar convosco! Há muito
tempo que nos deparamos com um dilema existencial no que toca ao nosso
trabalho: por um lado gostamos muito de ter um objeto físico que materialize as
canções, por outro, cada vez nos faz menos sentido gastar dinheiro a fabricar
CDs, que muita gente já não tem onde ouvir. Neste caso o livro (com códigos QR
que permitem às pessoas aceder às canções no telemóvel) pareceu-nos ser a
melhor solução, até porque nos permite explorar melhor as histórias que contamos
nas canções, e que têm muitos pormenores difíceis de contar numa canção de 3 ou
4 minutos.
A obra mergulha no
universo da Revolução dos Cravos, mas dá voz às figuras silenciosas dessa
mudança. Que tipo de investigação ou recolha de testemunhos esteve na base do
livro e do disco?
Este trabalho é sobre a Revolução e sobre os 48 anos
de Resistência à Ditadura. Tivemos várias fontes de recolha de histórias: a internet,
vários livros, jornais da época, mas a maior ajuda veio de várias pessoas com
quem falámos e que nos apontaram caminhos, com especial destaque para a Rita
Rato, diretora do Museu do Aljube e nossa amiga.
O que distingue estes
anónimos das figuras históricas mais conhecidas do 25 de Abril? Sentes que, ao
dar-lhes voz, estás a colmatar uma falha na narrativa oficial?
Acima de tudo o que distingue este trabalho de muitos
outros que já foram feitos sobre esta temática é o facto de falarmos de
intervenientes cuja história é desconhecida da maioria dos portugueses,
principalmente dos que, como nós, já nasceram depois de 1974. Todos os anos
se fala (e bem) dos Capitães de Abril, dos políticos, dos cantautores e
escritores, mas a luta e a conquista da Liberdade foram feitas por muitas
mulheres e homens que arriscaram a sua vida e o seu bem-estar em prol de um bem
comum!
Como foi o processo de
composição das canções? Houve alguma personagem ou história que te tenha
marcado particularmente e que tenha condicionado de forma mais intensa a
escrita de uma faixa?
O processo foi o mesmo que fizemos nos discos
anteriores: partimos do conceito, falamos do tipo de histórias que queremos contar,
o Zé faz as letras e eu componho em cima delas. A grande diferença é que aqui
as personagens não são fictícias, são pessoas de carne e osso, que tiveram
histórias de perseguição, de tortura, de prisão e em muitos casos de morte.
Isso torna tudo muito mais delicado porque sentes o peso de ter que ser fiel à
história e de não gorar as expetativas dos homenageados e das suas famílias.
Acho que só tive essa noção mais concreta quando mandei a primeira maquete da
canção Mariana (a primeira que fizemos) ao Miguel Carvalho,
jornalista que nos apresentou a história da sua Tia Branca Carvalho.
Quando carreguei no botão enviar senti uma grande angústia e fiquei a pensar:
“se ele não gostar da canção e sentir que não transmite a profundidade das
emoções desta história, será uma desilusão para toda a gente...”. Felizmente
não aconteceu com nenhuma das canções e essa é a nossa maior vitória neste
projeto!
Neste projeto usas
arranjos que se cruzam com sonoridades tradicionais portuguesas, mas também com
alguma modernidade subtil. Como construíste esta sonoridade para que servisse
tanto a palavra como o contexto histórico?
Olha, esta tua frase pode servir para O Coreto
ou para o Reunião de Condomínio. No fundo acho que esse é o nosso ADN e
o grande objetivo desde o primeiro momento: cruzar as raízes da música
portuguesa com a modernidade. A grande diferença aqui, como referi antes, é que
importava aliar a tudo isso o respeito pela profundidade de sentimentos que
estas histórias transportam e ao mesmo tempo tentar que o disco não fosse muito
negro, que mostrasse também a esperança no futuro e a poesia daquilo que esta
gente conseguiu com a sua luta!
O teu percurso tem sido
marcado por uma abordagem muito literária às letras e às histórias. Como foi
trabalhar, desta vez, com essa dimensão dupla – canções que vivem no disco, mas
também personagens que ganham vida no papel?
Este trabalho tem-nos permitido entrar no universo
literário e tem sido absolutamente fantástico! Eu e o Zé somos apaixonados pela
literatura e poder apresentar o nosso trabalho em Feiras do Livro e Festas
Literárias, poder dividir o palco com escritores que muito admiramos tem sido
uma experiência muito enriquecedora!
Voltas a trabalhar com
o José Fialho Gouveia na componente narrativa. Como tem evoluído essa
colaboração? O que vos liga criativamente?
Olha, tem sido uma evolução constante e muito
prazerosa. Na verdade, nós não trabalhamos só a vertente criativa e essa é a
principal caraterística que nos distingue de outras duplas criativas da música
portuguesa. Estamos juntos também na gravação, na produção, no agenciamento, na
estrada, no palco... Desde o primeiro ao último momento do processo. E neste Anónimos
de Abril, é justo dizer que a parte literária é toda do Zé, que escreve
seis dos oito textos do livro. Aquilo que sentimos é que a cumplicidade é cada
vez maior e isso faz com o processo seja cada vez mais rápido e orgânico.
Para além do José
Fialho, tens trabalhado sempre com equipas coesas e músicos muito próximos de
ti. Quem te acompanhou nesta jornada de Anónimos de Abril?
Há algum destaque que queiras partilhar?
Acho que essa tem sido uma das razões do sucesso do
nosso caminho, uma vez que levamos mais de 100 apresentações ao vivo desde
2021, o que é notável para uma estrutura independente, sem qualquer ligação às
estruturas da chamada indústria musical! Há vários dos músicos da equipa que
transitam para este projeto (Alexandre Alves, Marco Reis, Nuno
Oliveira, Luís Pinto e Sérgio Charrinho) e as principais
novidades são a voz da Joana Alegre e o piano do Carlos Garcia
(sendo que o João Afonso também esteve connosco no primeiro ano do
projeto). São artistas que já admirava há algum tempo e que trazem uma lufada
de ar fresco ao projeto, marcando também a diferença para os outros discos.
Desde os tempos de A Chave até à
afirmação plena d’O Coreto, e agora com Anónimos de Abril, é
notória uma crescente maturidade conceptual. Sentes que este projeto representa
um novo ponto de viragem na tua carreira?
Sabes, eu sou muito mais de olhar para a frente e para
o que ainda falta fazer do que para o que já está feito. Mas quando olho pelo
retrovisor, sinto que há uma evolução constante e uma grande consistência no
caminho percorrido, o que me deixa feliz e orgulhoso. Creio que O Coreto
marca uma nova fase, com a tal partilha de todo o processo com o Zé Fialho
Gouveia, para além das suas letras que são claramente um valor
acrescentado. Este projeto tem tido também um grande impacto pelo seu conceito,
com grande aceitação do público e da crítica, o que nos faz subir mais uns
degraus e, o mais importante de tudo, continuar na estrada, que é onde temos
crescido, ganho público e é onde somos verdadeiramente felizes!!
Em 2019 dizias-nos que
eras um cantor de causas. Em 2024, reforçavas a importância de olhar para o
passado para melhor entender o presente. Como vês hoje o papel do músico na
sociedade portuguesa? Ainda sentes esse dever interventivo?
Continuo a sentir a mesma coisa: o privilégio que
tenho de chegar a milhares de pessoas é também uma responsabilidade e uma
oportunidade que não devo desperdiçar. A música pode e deve entreter as
pessoas, mas também pode e deve fazê-las pensar, confrontá-las, desafiá-las e
até incomodá-las. Continuo a entender a arte como algo de transformador.
O projeto tem também
uma dimensão cénica e visual bastante forte. Está pensada uma apresentação ao
vivo que vá além do tradicional concerto?
Na verdade, o espetáculo que temos na estrada desde janeiro
de 2024 é muito mais que um tradicional concerto de música. Por um lado, temos
o Zé Fialho em palco a introduzir as histórias dos homenageados e temos também
uma forte componente de imagem, mais uma vez fruto do trabalho árduo do Zé
junto das famílias e na Torre do Tombo e também do talento do videógrafo Davide
André. É muito impactante ver os rostos das figuras que homenageamos, a
foto da Albina com o filho ao colo, as imagens do Tarrafal que Herculana e Luiz
Carvalho distribuíram pelas famílias, o caderno da Aurora Rodrigues com os dias
em que foi torturada assinalados...
Este projeto nasceu em
pleno ano de celebração dos 50 anos da Revolução. Que impacto gostarias que Anónimos de Abril
tivesse junto do público, sobretudo aqueles que não viveram esse momento?
Os 50 anos do 25 de Abril foram o ponto de partida,
mas nunca quisemos que se esgotasse nessa efeméride. Daí termos lançado o
“livrisco” já em 2025 e continuarmos na estrada não só com o espetáculo, mas
também com apresentações mais intimistas em que falamos das histórias e
cantamos algumas das canções pelo meio. Acima de tudo, queremos que as gerações
nascidas em Liberdade entendam o peso que teve a sua conquista e a necessidade
urgente de a preservar. Queremos que entendam que não foram só os políticos, os
militares e os artistas que lutaram, mas mulheres e homens comuns que podiam
ser os seus pais, avós ou tios. E que toda esta gente arriscou muito, não por
um interesse particular, porque não ganharam nada com isso, mas por um
imperativo de consciência e por um forte desejo de viver num país diferente.
Numa altura em que
tanto se discute o valor da liberdade, que mensagem esperas que fique desta tua
homenagem aos que, embora anónimos, foram fundamentais para a conquista de
Abril?
Acho que já respondi a isto na pergunta anterior, mas
acima de tudo quero que as gerações pós 74 entendam o verdadeiro peso de
palavras como clandestinidade, tortura, prisão, censura, igualdade de
direitos...
Por fim, e olhando para
o futuro, vendo que a capa traz inserido Vol. 1, já estás a
pensar num Vol. 2? Ou já tens outras ideias a fervilhar?
Era impossível não haver Vol. 2, até porque,
por falta de apoios, não conseguimos gravar todas as canções que fazem parte do
espetáculo (e é justo dizer que este Vol. 1 só foi possível graças ao
apoio da Sociedade Portuguesa de Autores, da Junta de Freguesia de
Rio de Mouro e dos quase trinta municípios que já contrataram o concerto).
E também porque, entretanto, nos foram chegando novas histórias e estamos já a
compor outras canções. Infelizmente a DG Artes não apoiou o projeto, nem no ano
passado, nem neste ano, o que inviabiliza o lançamento do novo livrisco em
2026. Mas estamos já a trabalhar em alternativas para o podermos concretizar em
2027. Entretanto estamos a trabalhar já no Coreto 2, que pretendemos
lançar no início do próximo ano...
Para terminar, que
mensagem gostarias de transmitir aos vossos fãs e aos nossos leitores?
Acima de tudo agradecer porque sem o vosso constante
apoio nada disto faria sentido. E reforçar o desejo de podermos finalmente
estrear um dos nossos espetáculos em Moimenta da Beira, tão breve quanto
possível!




Comentários
Enviar um comentário