Desde
a edição de The Sun In The Tenth
House que o quarteto português The Bateleurs tem vindo a afirmar-se como uma
das propostas mais genuínas da cena rock nacional, cruzando hard
rock, blues vintage, improvisação livre, emoção à flor da pele e uma
filosofia de autenticidade que se estende muito para lá do estúdio. Agora, com A
Light In The Darkness, o grupo inicia um novo capítulo: mais focado e mais
visceral. E, nesta conversa profunda, interessante e repleta de questões muito
pertinentes, Ricardo Dikk, baixista e fundador, conduz-nos pelos bastidores
deste renascimento criativo: Uma entrevista que não se limita ao factual, mas
que reflete sobre a própria essência de fazer música nos dias de hoje. Vamos a
isso?
Olá, Ricardo, tudo bem?
O que têm feito desde a última vez que conversámos, em 2022?
Olá. Muito obrigado por nos terem mais uma vez. Eu sou
o Ricardo Dikk, baixista e fundador dos The Bateleurs. Desde 2022
muita coisa aconteceu. Esse foi um ano muito intenso para nós, mas infelizmente
a partir do final de 2023 as coisas abrandaram. Apesar de termos escrito
material para um segundo disco, provou-se muito difícil conciliarmos
disponibilidades para avançarmos para a gravação propriamente dita, e no final
de 2024 tivemos de decidir que teríamos de fazer mudanças no line-up da
banda para o projeto continuar a avançar. Assim sendo, em novembro, deixamos de
colaborar com o nosso amigo Marco Reis; foi uma decisão amigável e
tomada de comum acordo, que em nada afetou a nossa longa amizade. Em janeiro de
2025 fomos então para o estúdio gravar o nosso novo álbum e conseguimos um
acordo com a Discos Macarras Records para a sua edição. Desde então, as
coisas têm andado mais rapidamente.
Depois
de The Sun In The Tenth House, regressam
com A Light In The Darkness. Que tipo de evolução
artística e emocional pretendem transmitir com este novo capítulo?
TSOTH foi um parto de longa duração, o disco começou a
ser gravado no final de 2019, foi posto na prateleira pela pandemia, retomámos
as gravações em 2021, quando o nosso foco já estava noutra direção, e o disco
reflete essa diversidade. ALITD é um álbum mais consistente. Foram escritas
perto de 25 novas canções ao longo de um período de poucos meses em 2024, das
quais escolhemos 12 para gravar; o processo final foi muito mais rápido,
gravações, misturas e masters foram feitos entre janeiro e fevereiro de
2025. Como a nossa intenção era ter uma edição em vinil, cortamos mais 3 temas
devido às limitações de tempo desse suporte, e acabámos com 9 temas no vinil e
mais um bonus track na versão CD e streaming. No geral, é um
disco que é muito mais focado no essencial e menos nos acessórios; procurámos
mais a essência daquilo que somos e do caminho que queremos percorrer,
afastámo-nos mais das influências e procurámos o que nos distingue de outras
bandas que praticam um género semelhante. Estamos muito satisfeitos com o
resultado, e principalmente aprendemos como ter um método mais eficaz e
pragmático na produção. Em termos emocionais, é um disco mais honesto, mais
focado no essencial e sem receio de abordar temáticas mais inquietantes.
O título A Light In The Darkness
sugere esperança em tempos sombrios. Que tipo de “luz” pretendem transmitir com
este disco?
O título nasceu da ideia de que todos nós temos de
encontrar uma guia para o nosso caminho, algo que nos orienta para chegarmos aonde
precisamos. Logo cedo tínhamos a ideia do farol, que guia navios para a
segurança, e em conjunto com algumas ideias emprestadas de antigas religiões
pagãs chegámos a este conceito de que, mesmo nos momentos mais sombrios, quando
a noite é longa e o sol tarda em nascer, se procurarmos com vontade haverá
sempre algo pu alguém que nos vai ajudar na travessia. É um processo de autoconhecimento
posto em forma de música e letras, que nos ajuda a nós e que se puder fazer o
mesmo por mais alguém, nos deixa muito contentes.
O álbum nasce num
contexto de mudança importante: a saída de Marco Reis e a entrada de Ricardo
Galrão. De que forma esta alteração na guitarra influenciou o som e a energia
global do disco?
O Marco é um guitarrista incrível com raízes muito
fortes no blues. Foi com ele que começámos a introduzir elementos de
guitarra slide na nossa música, que se tornaram um elemento definitivo
na nossa sonoridade. O Ricardo é outro tipo de guitarrista, mais baseado no rock
clássico, com uma abordagem muito diferente, tanto a nível musical como sónico.
Fez-nos explorar outras avenidas, e levou-nos para caminhos diferentes, o que
no geral enriqueceu os temas de formas muitas vezes inesperadas, mas sempre
positivas.
Comparando com os
trabalhos anteriores, sente-se um maior equilíbrio entre o rock vintage,
o blues e alguns elementos mais espirituais e atmosféricos. Foi um
processo natural ou uma procura deliberada de expansão sonora?
Estamos sempre à procura de expandir o nosso som, e
felizmente o estilo que praticamos é extremamente flexível nesse sentido; neste
disco fizemos um esforço consciente em trazer o máximo possível de uma vertente
mais improvisada e psicadélica, sem grandes preocupações em manter as
estruturas habituais de uma canção de rock, e nem sequer nos
preocuparmos se o tema ficava com 3 ou 13 minutos no final. Quando estamos em
modo de improviso, a música escreve-se um bocado a si própria, e é interessante
deixarmos o lado mais racional de parte e vermos o que acontece quando deixamos
a energia fluir mais livremente.
Em estúdio, optaram por
um processo muito orgânico, sem quantização, sem autotune, sem grandes edições.
O que vos atrai nessa abordagem mais crua e “viva” e que impacto acham que tem
na autenticidade do resultado final?
Todos os trabalhos de estúdio dos The Bateleurs
foram produzidos com base nessa premissa. Nas últimas décadas a tecnologia de
gravação digital criou várias ferramentas que auxiliam e aceleram os processos
e que fazem com que a produção musical atual seja muito maior do que alguma vez
foi. Sempre acreditámos que isto não é de todo um fator que seja
particularmente positivo, porque fazer mais depressa raramente se traduz em
fazer melhor. Os discos que mais nos marcaram foram produzidos sem estas
tecnologias e são aqueles que mais resistem ao teste do tempo, porque são mais
honestos, mais verdadeiros, mais despidos de artifícios, e assim são os que nos
tocam mais profundamente. A “magia” do rock’n’roll está nessa verdade,
tens de arriscar, jogar pelo seguro não entra na equação, o ouvinte tem de
sentir o perigo, tem de pensar que a qualquer momento a aventura vai correr
mal. Este sentimento tem estado ausente das produções mais modernas, mas cada
vez mais bandas têm desconstruído e percebido que um disco muito bem produzido
e perfeito peca pela falta dessa energia visceral e desse sentimento de perigo
iminente. É um pouco como um bom romance ou filme de aventuras, o leitor/espectador
tem de temer pelo protagonista para se manter interessado na narrativa. Temos
levado esta ideia cada vez mais ao extremo, e queremos num futuro próximo
gravar um disco num estúdio onde nem sequer exista um computador.
Trabalharam em três
estúdios diferentes (Canoa, Dynamix e Vale de Lobos) com engenheiros de renome.
Que papel teve cada espaço e cada técnico na construção da sonoridade de A Light In The Darkness?
Os três estúdios surgiram de uma combinação de fatores
artísticos e logísticos. Primeiro, todos os nossos trabalhos começam nos Canoa
Studios, porque tem uma das melhores salas do país e porque o Nelson
Canoa, além de ser um grande amigo de longa data, é um engenheiro de som
exímio que entende a nossa estética como ninguém. Lá em apenas 2 dias gravámos
cerca de 70% do álbum. Seguidamente, o Dynamix Studio, do nosso amigo Ricardo
Fernandes, onde já tínhamos trabalhado no álbum anterior, que agora é
também a casa da Malware Productions do nosso amigo David Jerónimo,
tem uma coleção de amplificadores de guitarra vintage a válvulas, preamps
e microfones que é um sonho. Aí fomos fazer overdubs adicionais e gravar
alguns elementos acústicos. Por fim, Estúdios Vale de Lobos são o local
onde está o órgão Hammond mais bem preservado da região com a respetiva
coluna Leslie, e que o engenheiro Pedro Simões sabe captar na
perfeição. Sabíamos o que precisávamos e onde o podíamos encontrar, e estas
três pessoas contribuíram imensamente para a sonoridade deste disco, não
podíamos estar mais satisfeitos.
O álbum inclui
colaborações de nomes como Nuno Louro (Hammond), Tiago Maia
(slide guitar), Rúben Monteiro (flauta irlandesa) e Niklos Pavliidis
(violino). Como surgiram estas participações e que dimensão acrescentaram às
composições?
O Tiago Maia é nosso amigo há muito
tempo, já tocou concertos connosco, já era um Bateleur honorário;
queríamos que ele finalmente tivesse uma participação num trabalho de estúdio,
e tínhamos o tema perfeito para a ocasião. O mesmo se passa com o João
Colaço, que já fez inúmeros concertos connosco, principalmente em Espanha,
e tivemos a oportunidade de ele poder ter a sua contribuição registada no estúdio.
O Nuno Louro é outro amigo com quem trabalhámos em vários projetos e tem
a cultura e a linguagem que servem na perfeição os temas onde participou. O Rúben
Monteiro e o Niklos Pavliidis surgiram da necessidade que tínhamos
de uma sonoridade mais folk numa canção. Conhecemos o Ruben há muitos
anos e já colaboramos juntos; enquanto líder dos Albaluna, ele tem um
conhecimento enorme de world music, bem como proficiência em vários
instrumentos de diversas culturas, foi uma escolha imediata para este tema. O
Niklos é grego, excelente violinista, e trouxe uma abordagem completamente
diferente. Foi uma surpresa ouvir a forma como ele interpretou a canção.
Em temas como A Price For My Soul
e For All To See sente-se uma escrita mais introspetiva e poética. Que
preocupações ou vivências pessoais estiveram na base das letras desta nova
fase?
Em termos líricos, costumamos fazer as coisas de uma das
duas maneiras: ou escrevemos do ponto de vista pessoal e exploramos ideias e
sentimentos vividos na primeira pessoa, ou fazemos um exercício criativo de
imaginar como seria ser uma determinada pessoa numa determinada situação.
Nesses dois temas específicos, passa-se um pouco de ambos. A Price For My
Soul descreve um sentimento que quase toda a gente já experimentou, que é
aquele momento em que parece que tudo está tão mal que já não pode ficar pior.
Pegámos no folclore do blues americano e encenamos uma conversa com uma
entidade do submundo, onde se negocia uma descida ao inferno, pressupondo que
não ficaremos pior do que já estamos; é uma ideia que encontra eco em muita
gente, infelizmente. Em For All To See a mensagem é muito mais positiva:
a letra descreve muito especificamente o que é ser músico, a vida de
saltimbanco, as viagens, os dias maus e os bons, e a promessa que tudo vai
continuar, porque mais do que uma escolha, este modo de vida é uma
inevitabilidade: podes tirar uma pessoa da música, mas nunca conseguirás tirar
a música de uma pessoa.
O álbum foi editado
pela Discos Macarras Records, um selo espanhol que aposta em sonoridades
autênticas e old school. Como surgiu essa ligação e o que esperam desta
nova parceria?
Temos diálogos com a Discos Macarras desde
2021, mas por vários motivos a nossa colaboração só aconteceu presentemente.
Eles têm estado a 100% connosco na crença de que este disco é o que vai levar o
projeto mais longe, e tudo têm feito para o promover. Estamos muito contentes
em trabalhar com eles, e é uma relação que queremos manter no futuro.
Ao longo da vossa
trajetória, sempre privilegiaram o lado humano da música: groove, improviso,
emoção. Sentem que esse tipo de autenticidade ainda encontra espaço num
panorama cada vez mais digital e artificial?
Temos de nos lembrar de que o que fazemos é um nicho
reduzido no panorama musical; muito reduzido em Portugal, um pouco mais
alargado internacionalmente, mas mesmo assim um nicho. Nesse pressuposto, acho
que cada vez mais bandas procuram essa autenticidade e viram costas às ditas
fórmulas da indústria, tanto a nível da produção como da posterior promoção. Tenho
de dizer também que autenticidade não quer dizer que se faça tudo em cima do
joelho e se feche os olhos ao erro humano, tem de se ter disciplina e
capacidade de sacrifício para conseguir um resultado consistente. Não me agrada
quando ouço coisas que me soam displicentes e que se refugiam nesse conceito,
autenticidade não pode ser preguiça, tem de se percorrer o caminho, mesmo
quando é longo, e não nos satisfazermos com a primeira coisa que aparece.
Espontaneidade, sim, privilegiar o instinto à racionalidade também, mas temos
de afinar as nossas capacidades para conseguirmos executar as ideias o melhor
possível. Sempre me irritou aquela frase: “ele não toca muito bem, mas tem feeling”…é
um conceito sobrevalorizado, se tens alguma coisa para dizer, tens de o fazer
bem feito, não te podes refugiar, não podes ter preguiça, tens de trabalhar. Os
grandes de antigamente que todos admiramos trabalharam anos para aprimorar as
suas capacidades, não podemos ter a pretensão de que conseguimos chegar lá com
menos.
Já anunciaram concertos
em Portugal e Espanha e uma tour mais alargada para 2026. O que pode o
público esperar destes novos espetáculos e de como vão traduzir A Light In
The Darkness para o palco?
No momento em que respondo a esta entrevista, já
fizemos três concertos desta primeira fase da tour. O lançamento do
álbum no Coliseu Club foi uma noite memorável, levámos vários
convidados, tivemos nove músicos em cima do palco e foi um momento em que
conseguimos elevar a nossa música a altitudes que nunca tínhamos experimentado
ao vivo. Conseguimos reproduzir alguns arranjos do disco na perfeição, e quem
esteve presente pode testemunhar isso mesmo. Por mim, todos os concertos seriam
assim. Infelizmente, por motivos logísticos não é possível, e, entretanto, já
fomos fazer dois concertos em Espanha só com o quarteto de base. Conseguimos
reproduzir os temas sem dificuldade, muito pelo facto de que temos muita
atenção a esse fator, nunca excedemos os arranjos a um ponto em que as canções
percam identidade ao vivo; podemos ornamentar um pouco em estúdio, mas o tema
tem de soar se o tocarmos só com os elementos básicos. Os dois concertos em
Espanha correram na perfeição, fomos mais uma vez muito bem recebidos, como
seria de esperar visto que tocamos muito mais lá do que aqui. Vamos anunciar
mais concertos em Portugal ainda este ano, e podemos garantir aos que estiverem
presentes que o nosso espetáculo ao vivo está melhor do que nunca,
aconselho-vos a não o perderem.
Olhando em
retrospetiva, do EP Immanent Fire até agora, o que mais vos orgulha neste
caminho e que lições trazem desta primeira grande fase da história dos The
Bateleurs?
Desde 2018 percorremos um grande caminho; aquilo que
mais nos frustra foi o período da pandemia. Em pouco mais de um ano conseguimos
fazer muito e levar o projeto para lá das fronteiras do país, para depois
ficarmos 2 anos sem poder avançar. Foram meses muito desmotivadores, mas nunca
deitamos a toalha ao chão: terminamos as gravações do nosso disco de estreia e
ainda tivemos oportunidade de gravar as VC Sessions na Valentim de
Carvalho, o que ajudou a manter a chama acesa. Não perdemos mais tempo e o
disco saiu em maio de 2022, mal se pode voltar à estrada aí estávamos, com uma tour
em Espanha logo nesse verão. O que mais nos orgulha é que, mesmo nos momentos
de maior adversidade, existe uma resiliência que nos faz derrubar todos os
muros e continuar; o que não nos mata só nos fortalece, e este último álbum é
um espelho disso mesmo. Estamos a trabalhar na promoção deste já com os olhos
no próximo, que não vai demorar muito; temos 2 anos para recuperar!
Por fim, que mensagem
gostarias de deixar aos nossos leitores e aos vossos fãs?
O que quero dizer principalmente é o seguinte: temos
muita sorte por conseguirmos manter este projeto a funcionar com o apoio de
tanta gente. Agradeço profundamente a todos os que compraram os nossos produtos
físicos: CDs, vinis, t-shirts, é isso que nos dá capital para reinvestir
e manter o projeto financeiramente viável. Agradeço também a quem compra
bilhetes para os concertos, só com esse complemento se consegue manter este
barco a navegar. Faço aqui também uma confissão: nunca acreditei no modelo do streaming,
nunca usei Spotify ou equivalente, e só mantemos a nossa música nessas
plataformas porque sinto que a banda precisa desse meio de divulgação. O streaming
foi a pior coisa que aconteceu às artes musicais nas últimas décadas,
desvaloriza a música e os músicos e faz o lucro fluir quase inteiramente na direção
daqueles que mais têm. Praticamente já toda a gente sabe disto, e se bem
que compreendo que o consumidor de musica mais mainstream não se sinta
muito sensibilizado nesta matéria, surpreende-me que os fãs de estilos mais
como o nosso e semelhantes não tenham já feito um boicote a nível mundial a
estas entidades que não estão preocupadas nem com os músicos nem com os
ouvintes, apenas com o aumento das suas cotações na bolsa e no engordar das
suas contas bancárias, para depois investirem na industria do armamento e em
inteligência artificial. Infelizmente não nos podemos dar ao luxo de fazer o
que cada vez mais gente tem feito, que é retirar todo o catálogo das
plataformas de streaming, mas gostava de acreditar que, com a vossa
ajuda, isso pode ser possível em breve. Posto isto, a minha mensagem é a
seguinte: formatos físicos, merchandising e bilhetes de concerto de bandas
emergentes são o que vai salvar o futuro da música, por isso para apoiarem,
deixem de dar ao Danny Elk e invistam nos novos artistas, por
favor…obrigado a todos!




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