Do caos calculado entre distorções, melodias ancestrais e o
sopro inesperado do jazz, nasce um nome que
desafia rótulos e expetativas: Ckraft. A banda francesa pode ser considerada
como arquitetos de uma paisagem sonora onde o medieval se cruza com o
progressivo e onde riffs demolidores encontram a sofisticação do
saxofone e do acordeão sintetizado. Com o seu segundo trabalho, Uncommon
Grounds, o coletivo leva a sua identidade ainda mais longe, explorando
territórios inexplorados e consolidando uma assinatura única. Para nos guiar
por esta viagem sonora, falámos com Charles Kieny, o cérebro por trás deste
projeto singular.
Olá, Charles, obrigado
pela tua disponibilidade. Antes de mais, podes apresentar os Ckraft aos metalheads portugueses?
Olá, pessoal,
muito obrigado por me receberem hoje! Ckraft
é uma banda de metal de França, que
mistura elementos de death/prog com melodias da Idade Média e solos
de saxofone e acordeão sintetizado influenciados pelo jazz. Eu toco acordeão sintetizado nesta banda e escrevo quase
todas as músicas.
Ckraft pode ser descrito
como um som híbrido, combinando os talentos de músicos de diversas origens.
Como é que as diferentes influências musicais de cada membro da banda moldam as
vossas composições?
Essa é uma ótima
pergunta! A abordagem que tenho em relação à escrita de música, não só nos Ckraft mas também nos meus outros projetos,
é que a faço sempre para os meus músicos, para os meus companheiros, conheço e
uso os pontos fortes de cada músico, por isso quanto mais toco com eles mais
precisa se torna a minha escrita para os Ckraft.
Ckraft é uma mistura muito estranha,
temos um acordeonista a tocar sintetizador (eu), um saxofonista a navegar entre
o jazz tradicional e a música
experimental (Théo), um guitarrista multi-instrumentista com uma forte base
clássica (Antoine), um baixista reconhecido pelo seu trabalho recente com Terry Line Carrington e Tigran Hamasyan (Marc) e um baterista
de sessão com um enorme som e paixão pelo rock
e metal progressivo (William).
O nome da banda, Ckraft,
combina arte e força. Como é que ele reflete a vossa filosofia e a essência da
vossa música?
De facto! Craft em inglês significa o trabalho
artesanal que adoramos, trabalhar, gravar, tocar, criar o som a partir do zero:
não há samples ou programação, nós
esforçamo-nos e tocamos tudo. O que se vê é o que se obtém! E Kraft em alemão significa “força, poder”
que é essencial num som de metal.
Desde o vosso álbum de
estreia Epic Discordant Vision até Uncommon Grounds, o vosso som evoluiu significativamente. O que consideras ser o
maior crescimento ou mudança entre estes dois discos?
Eu acho que não
há nenhuma “grande” mudança no geral. Seguimos naturalmente o mesmo caminho que
começámos com o primeiro álbum, e o nosso som, as nossas técnicas de
gravação/mistura melhoraram com os anos. Espero que possamos continuar a
trabalhar da mesma forma e lançar uma dúzia de outros álbuns e ver como as
coisas vão soar depois de 30 anos de desenvolvimento!
Uncommon
Grounds mistura metal, jazz e música medieval. Como é que
conseguiram fundir estilos tão distintos mantendo um som coeso?
Mesmo que a
apreciação do resultado permaneça subjetiva, ter um som coeso é a minha
preocupação número 1 quando escrevo esta música, por isso obrigado por esse
elogio! Para Ckraft estou a usar melodias que roubei dos cantos
gregorianos, são bastante minimalistas, usam muito poucas notas e trazem
instantaneamente uma direção forte. Combino esta força melódica medieval com o
meu profundo amor por riffs esmagadores e harmonias de jazz
ilimitadamente loucas e dissonantes. Apesar de todas estas experimentações, esta
continua a ser uma banda de metal, e todo o processo de produção é feito
à medida para atingir um som de metal (double-tracking de
guitarras, gravação com um metrónomo, separação de instrumentos quando
gravamos, mistura e masterização em conformidade, etc.).
Seis das oito faixas do álbum são baseadas em música medieval.
Podes falar-nos mais sobre a tua abordagem para adaptar estas melodias antigas
a um contexto moderno de jazz-metal?
Sem dúvida, esse
é o meu tema preferido. Bring Forth The Imperial Ghost (faixa 2) usa o
cântico Salve, Sancta Parens, referindo-se à ‘mãe sagrada’ que ‘dá à
luz’ o ‘rei’. O conceito de “trazer à luz” levou-me a misturar influências de
duas outras bandas que não se suspeitaria: Imperial Triumphant e... Ghost!
Daí o título.
Misconstruction Of
The Universe (faixa 4) refere-se à má interpretação do
universo. A letra latina do canto gregoriano Universi Qui Te Expectant
traduz-se por “De todos os que esperam em ti, nenhum será confundido [...]
faz-me conhecer os teus caminhos, ensina-me as tuas veredas”. Os caminhos das
religiões são todos mais ou menos semelhantes, mas sempre esotéricos. Estou a
tentar imitar este conceito, com o riff principal baseado num padrão
rítmico impossível de compreender e usando o tal canto gregoriano como fio
condutor.
Nostre
(faixa 8) é uma reinterpretação do Kyrie da Messe de Nostre Dame de
Guillaume de Machaut, uma polifonia importante do século XIII, combinada
com um riff tipo Gojira e um solo épico de sintetizador e
saxofone sobre ele!
Pageantrivia (faixa
6) é um título inspirado em grandes cerimónias, como os funerais reais. A
solenidade e a magnificência esmagadora desta forma de homenagem, juntamente
com o canto gregoriano Salve Regina (Tonus Solemnis) dedicado à
“virgem Maria” referida como “rainha”, estão entrelaçados nesta composição.
Tentei apresentar uma narrativa épica e grandiosa, para retratar a sensação de
profunda insignificância nas nossas vidas como “meros mortais” quando
comparadas com noções como a realeza ou as religiões... que podem parecer
triviais, uma vez que são, afinal, construções humanas!
Swallowed By The
Storm (faixa 7) inspira-se no canto gregoriano Sospitati Dedit Egros,
homenagem a São Nicolau, que era visto como o protetor dos marinheiros durante
a Idade Média. Diz a lenda que ele avisou um marinheiro de uma tempestade
iminente. Apesar de ter sido engolido por ondas violentas, São Nicolau acalmou
milagrosamente o mar, garantindo o salvamento da tripulação. Na versão dos Ckraft,
a narrativa toma um rumo diferente. Depois de um início turbulento com um riff
esmagador, como se as ondas batessem no casco do barco, um interlúdio
harmonioso, quase como uma pausa, dá lugar a um riff discordante e
forte, concluindo a peça de forma abrupta e inesperada. A tempestade persiste,
sem que nenhum santo ou religião a livre.
Em particular, a faixa All
You Can Kill inspira-se no canto gregoriano Dies Irae. O que é que
este cântico tem de especial para ti e como é que o reinterpretaste para este
álbum?
Sem dúvida, este
é um sucesso de vendas (risos)! Inspirei-me nas vastas quantidades em que a
humanidade pode espalhar a morte. O título é uma referência ao conceito de buffet
“all you can eat”. O Dies Irae é um dos cantos gregorianos mais
conhecidos: usar esta melodia em qualquer peça musical traz instantaneamente
imagens da ira divina e do julgamento final de todos os seres na Terra: é o
hino sinistro da mortalidade.... A sério, o que há de mais metal do que
isto? Se nascemos e crescemos como ocidentais, acho que é impossível não nos
identificarmos com o Dies Irae, porque está em toda a parte na nossa
cultura, em todos os géneros musicais, desde a música clássica ao metal,
passando pelo cinema, pelos jogos de vídeo, etc. Assim que a morte é
mencionada, há 99% de probabilidades de ouvirmos esta melodia exata nos
segundos seguintes! Por isso, como compositor que usa melodias medievais para
escrever músicas de metal, tinha de a usar mais cedo ou mais tarde (e
dada a sua importância, fiz dela a faixa de abertura do álbum!)
A faixa-título do álbum, Uncommon Grounds, foi co-composta por toda a banda. Como é
que o processo de colaboração para esta faixa foi diferente das outras
compostas apenas por ti?
Normalmente
escrevo tudo sozinho em casa, edito-o, imprimo-o e levo-o para o ensaio. Por
vezes, também exporto demos MIDI de muito má qualidade para que os
outros músicos tenham uma noção das notas e do tempo, mas nada de muito
extravagante para evitar ser demasiado influenciado! Mas para esta faixa (Uncommon
Grounds, faixa 5) fizemos algo que nunca tínhamos feito antes: sentámo-nos
numa sala e improvisámos durante algumas horas. Toda a gente teve ideias,
bocados e peças que eu escrevi, gravei... e depois só eu fui para casa e fiz as
coisas de totó!
O uso do acordeão sintetizado e do saxofone são muito pouco
convencionais para o metal. O que te
inspirou a incluir estes instrumentos, e como é que eles contribuem para a
identidade única dos Ckraft?
Para o acordeão
sintetizado, foi um longo processo! Eu cresci a ouvir rock, funk,
metal e groove, e sempre quis fazer parte dessas bandas. Mas o
acordeão é demasiado fraco, quando estamos sentados ao lado de amplificadores,
ou mesmo apenas de um baterista, o nosso som desaparece no turbilhão de som
amplificado. Tive de arranjar uma solução, por isso adicionei sensores
eletrónicos ao meu acordeão acústico e agora posso ligar-me diretamente a
sintetizadores e tocar ao mesmo nível de volume que as guitarras elétricas e a
bateria. Quanto ao saxofone, por acaso estudei jazz durante alguns anos
com o meu amigo Théo (saxofonista dos Ckraft), estávamos no mesmo
conservatório de música e a primeira vez que o ouvi tocar soube que tínhamos de
fazer algo juntos. Os seus sons e fraseados de saxofone tenor são de outro
mundo. Um mundo muito retorcido. É também por isso que não temos um vocalista,
quero deixar todo o espaço “vocal” para ele. Para os aficionados, quero
acrescentar que o saxofone e o acordeão são ambos instrumentos de “palheta”: o
seu som combina muito bem um com o outro, por isso estou a pensar no acordeão +
saxofone como uma “secção”. Esta “escrita de secção” é bastante óbvia, por
exemplo, na faixa-título Uncommon Grounds (faixa 5) por volta de 01:18,
a melodia do sax + acordeão é quase escrita como uma secção de big band!
Trabalhaste com estúdios e profissionais notáveis como Corentin
Anis, Jean-Pascal Boffo e Thibault Chaumont. Como é que os seus conhecimentos
melhoraram os processos de gravação, mistura e masterização do álbum?
Digamos que todos
eles trouxeram o seu ingrediente especial para o processo! Corentin Anis
é o engenheiro da casa de uma editora discográfica de soul/funk
em Paris, por isso tem uma abordagem muito “orgânica” à gravação e uma vasta
experiência em equipamento vintage que normalmente tem um som muito
quente! Jean-Pascal Boffo é um dos primeiros engenheiros de som dos Ckraft,
gravou na íntegra o nosso primeiro álbum Epic Discordant Vision, por
isso conhece realmente a nossa... visão! A mistura é feita pelo Marc (o nosso
baixista), que também é engenheiro de som e a sua experiência como artista,
conhecendo a música dos Ckraft de cor, faz dele o candidato perfeito
para este trabalho. E finalmente Thibault Chaumont (Deviant Lab
Studio) trata da masterização, ele tem um background de metal
mais forte do que qualquer um de nós (Igorrr, Carpenter Brut, Mass
Hysteria, Trepalium, Ultra Vomit, ele foi o engenheiro de som
dos Gojira a dada altura...) por isso trabalhar com ele traz o volume
extra e a agressividade que precisamos!
Qual foi a visão por detrás do artwork do álbum, criado por Olivier Laude e como é que ele
complementa a vossa música?
Queríamos manter
a continuidade entre o artwork do primeiro e do segundo álbum, por isso
é que estão ligados pela água (um tsunami começa na primeira capa e continua a
inundar o segundo álbum!). Complementa a nossa música porque a ilustração é
derivada de uma pintura clássica (Scene du Déluge de Joseph-Désiré
Court) que o nosso Olivier cortou num grande pedaço de linóleo, tingiu e
imprimiu ele próprio! Temos um vídeo no nosso Instagram que mostra todo
o processo. Tal como a música, o processo de ilustração passa pelo artesanato,
sem atalhos tecnológicos.
Já tocaram com os Shining e Hypno5e, por isso há planos para
voltar aos palcos em 2025? De que forma as atuações ao vivo influenciam a tua
música e o que é que os fãs podem esperar dos vossos próximos espetáculos?
Na verdade, é ao
contrário: a nossa música é feita à medida para atuações ao vivo! Ainda não
temos muitos concertos, mas estamos ansiosos por tocar mais. Estes concertos
com os Hypno5e, Shining, e outros, foram os melhores momentos da
nossa aventura como banda! Por enquanto, estamos a fazer alguns concertos em
França e na Alemanha, mas esperamos viajar mais (talvez a Índia em fevereiro de
2026! trabalho em curso). Estamos também a planear uma digressão
Alemanha/França com os Kilter (liderados pelo baixista Laurent David
dos Folterkammer, o saxofonista Ed Rosenberg III dos Jerseyband
e o baterista Kenny Grohowski dos Imperial Triumphant/Secret
Chief3/John Zorn), em setembro de 2025. Espero que um dia possamos
ir a Portugal!
Obrigado, mais uma vez, Charles. Queres mandar alguma mensagem
aos teus fãs ou aos nossos leitores?
Obrigado. mais
uma vez por me deixarem falar sobre os Ckraft hoje e obrigado a todos os
nossos fãs que nos seguem, que fazem streaming e partilham o nosso
trabalho, que compram o nosso merchandising e que aparecem nos
concertos, não o conseguiríamos fazer sem vocês!
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