Três anos
depois, os MulherHomem continuam iguais a si próprios: caóticos, enigmáticos,
imprevisíveis com recursos líricos de uma qualidade impressionante. Depois de Novecentos surge O Inverno dos Outros, um claro passo em frente na afirmação do trio
como um dos projetos mais interessantes e inovadores do underground nacional. De uma forma eloquente Bruno Broa falou-nos
desta nova criação.
Olá, tudo
bem? O que têm feito desde a última vez em que conversamos?
Ora viva! Temos estado enclausurados no estúdio a
compor outro disco e a preparar concertos para mostrar este novo. Meio sujos e
suados, por vezes munidos de câmaras, acorrentados por vontade própria, mas sem
passar fome, porque existe uma dose saudável de canibalismo criativo de que a
banda se alimenta e faz alimentar. E tu?
Depois de Novecentos surge O Inverno dos Outros. O que mais afasta e/ou aproxima os vossos
dois trabalhos?
O tempo é o que mais afasta e a progressão da banda é
o que mais une. Mas isto do tempo é algo que invariavelmente separa e une
sempre alguma coisa, porque afinal, a progressão depende do tempo. O retrato a
que o 900 se propôs continua ainda,
para nossa satisfação, um retrato que preserva bem as suas cores, mesmo sendo um
disco com quase 5 anos. Este Inverno que se impôs sobre a banda aprofundou e
cimentou traços que agora os definimos como traços. À distância, graças ao
tempo. Temos a perceção que um disco
segue o outro, como num episódio que guarda a mesma personagem que sobreviveu
ao gravitas que lhe foi imposto pela
narrativa do primeiro disco. É no inverno dos outros que vemos mais um pouco do
que se tratou o primeiro disco, depois da destruição, do caos e da desonra da
estreia. Com o que temos feito ultimamente em estúdio, com novos temas, é
engraçado estar a sentir agora o mesmo sobre este novo disco, depois de
composto, escrito, tocado ao vivo, gravado e filmado, só agora nos acolhe
revelando os segredos… alguns. Quase parece um augúrio, como todos os Invernos parecem
ser. Que seja dos bons.
O título O Inverno dos Outros acaba por ter algo
de literário. As vossas letras continuam a ser de uma qualidade rara nos dias
de hoje. Essa parte das palavras continua a ser bastante importante para os
MulherHomem? O que mais vos inspirou neste aspeto desta vez?
Antes de mais, obrigado! A escrita, no nosso caso,
parece que nasce de um agradável paradoxo, um acaso conflituoso do momento que
depois aparenta ter sentido e simetria. E sendo um caos simétrico, nem que seja
pelas paredes da rima que a musicalidade e o género da “canção” parecem exigir
como norma, deixa sempre um traço de misticismo e desconforto. Coisa que a
simetria não devia fazer. Nada que se escreva hoje em dia é particularmente
inovador, resta ao letrista encontrar no que já foi escrito para trás dele as
suas próprias entrelinhas e esperar pelo melhor. Uma espécie de escrita ad hoc. O que não deixa de ser
interessante para nós, que a escrita das letras seja no fundo um ato
irresponsável. É um olhar obscuro de como o vago interior se relaciona com
extenso e complexo exterior que nos rodeia e influencia. Ao fim deste segundo
disco, onde nos ensaios já se escutam as linhas gerais de um terceiro, é
estranho o prazer de observar as narrativas, como uma longa história ou uma
saga de um estranho individuo que parece mover-se através dos discos,
comunicando a sua presença pelas letras, deixando relances da sua história
pessoal e da sua confusa interação, quase como que atraído pelo som que se faz
dentro do estúdio e que inusitadamente convida este persona irresponsável a
entrar e a fazer e dizer das suas.
Assim sendo,
o que surge primeiro: a história ou a música?
No seguimento lógico do que te dizia no final da
última pergunta, é a música que convida e que despoleta no momento o frenesim. É
sangue na água em água com tubarões. Porque a nível emocional, é muito comum
conversarmos sobre o ambiente daquela música que acabou de sair da cabeça do
Luís e do Alexandre. Muitas das
vezes a imagem é muito mais perturbadora que a síntese lírica que depois nasce
dela. O que já nos levou várias vezes a ponderar lançar um livro de contos ou
tiras de Banda desenhada junto com um disco. Quem sabe no terceiro? Mas há sempre uma bagagem anterior à
música, que muitas das vezes pode ser o motivo da atração.
Para já, em
termos de vídeos, já há três (Todo o Ar,
Não Há Volta a Dar e Culinária do Amor). Porque estes temas?
Há previsão para mais algum vídeo?
O vídeo para Todo
o Ar foi uma teimosia de estilo. Não é de facto a música mais direta nem a
mais simpática para o ouvido alheio. Mas lá está, a narrativa que discutimos
sobre o tema foi tão forte que quisemos fazer algo cheio de fúria e ímpeto.
Mais uma vez um ato de irresponsabilidade do rock e da imagem que tanto gostamos. Feito em casa, com má
qualidade, má imagem, mau tudo, numa ação propositada de estilo e desconforto.
Às vezes o sangue ferve sem razão aparente e queríamos ver se este vídeo era
uma competente placa de indução. Provou sê-lo. Porque até hoje as pessoas
revelam-nos que é um dos vídeos mais desconfortáveis que já viram e não
conseguem explicar porquê. A Culinária do
Amor foi o vídeo seguinte, para o tema que assumimos como o single do disco. Um processo bem
diferente do vídeo anterior, onde procuramos assumir a banda e narrar a letra
via vídeo. Quanto ao Não Há Volta a Dar
é um vídeo inesperado, não havia planos nem ideia de o fazer. Foi criado numa
semana com base na arte duma alma gémea da banda com 600 anos de separação (lá
está o tempo). Com um modelo criativo completamente diferente dos outros 2
anteriores e que inclusive não foi permitido anunciar pelo facebook por ter nudez em algumas imagens. O que só revela a falta
de cultura e a castração voluntária moral por parte de uma estrutura tacanha.
Houve alguém nos estados unidos que achou que o peito pintado numa obra-prima
de hyeronimous bosh é contra os
valores da família. Bravo! O próximo vídeo está pensado, não sabemos ainda nem
o tema nem o modelo, mas será para breve.
Todos estes
vídeos surgem da vossa parceria com a MAMUT, certo? Em que consiste essa
entidade e essa parceria?
A MAMUT, para nós na figura do Filipe, é um feliz e há
muito necessário acaso. Uma ajuda preciosa em tudo o que fazem e no que podem
fazer para nos ajudar a promover o nosso trabalho e arranjar momentos onde
participar como banda neste meio geocêntrico, logo desatualizado e inapropriado,
da música portuguesa. Onde é no meio amador e underground, onde ainda se fazem as coisas no verdadeiro sentido da
descoberta e da curiosidade, bem e de forma genuína. O papel da MAMUT é a da
credibilidade da promoção da nossa criatividade e que para nós era há muito
necessário. É a parceria mais importante que dispomos do momento e na qual
depositamos uma grande vontade em trabalhar em conjunto e com isso chegar a
mais pessoas.
Há temas de O Inverno dos Outros que já surgiam nos
concertos por alturas de Novecentos.
Portanto, este conjunto de 11 canções foi-se desenvolvendo ao longo dos últimos
anos?
No último ensaio, tivemos a mais lunática das conversas,
que surgiu da cabeça do nosso baterista. Onde invertemos a lógica da
composição, dos concertos e dos lançamentos dos discos. De repente o disco não
surge na figura do início, da génese, mas como o fim, o zénite de todo um
processo. Não apenas o criativo, pois seria óbvio, mas também o próprio
processo de apresentação do disco. No cenário português e das bandas underground essa apresentação já foi
feita em vários concertos, onde inevitavelmente quisemos tocar temas novos,
inovar o line up e ver a receção da
música ao vivo. Em suma, quando lançamos o disco, as músicas já foram tocadas,
um grande número de pessoas já as escutaram e já reagiram a banda como um todo.
Esse belíssimo paradoxo persiste ainda agora, pois nos concertos que estamos a
dar nos últimos tempos já figuram no alinhamento músicas de um possível terceiro
disco. E quando fizermos os concertos de “lançamento” do Inverno dos Outros ainda mais temas vão estar misturados, como que
a complementar a narrativa total do nosso percurso e a adensar ainda mais a
nossa irresponsabilidade face ao status
quo. Deve ser a nossa costela punk.
Até porque
este álbum teve uma génese tudo menos rápida, não foi?
Lá está. A gravação do álbum sim, mas o processo de
composição não. A gravação do álbum foi uma saga. Porque na imediata
necessidade de apostar na qualidade da gravação exigiu em contrapartida tempo e
dinheiro, coisa que nem sempre dispomos com relativa facilidade. E ao ter a
sorte de contar com o Pedro Moreira Dias como Produtor do disco, isso exigiu a
responsabilidade que ele fizesse parte de um projeto com todos os contornos bem
preparados, na medida do possível é claro. A gravação foi rápida, o processo de
mistura e masterização é que foi longo, por várias razões, todas elas humanas,
o que acaba por conferir ao disco uma dimensão corpórea muito interessante.
Passou pelas mãos de muita gente, para uns um enigma, para outros uma tarefa
bíblica, para todos um trabalho importante de ser feito e concluído o melhor
possível. E assim foi. O disco é humano para humanos. Para que tipo de humanos
é que fica por esclarecer. O próximo apostamos em ser algo um pouco mais
selvático e impulsivo. Vamos ver.
Este álbum
foi inicialmente disponibilizado em formato digital, mas agora já têm uma
versão física limitada, correto?
A versão física sairá muito em breve, num formato
muito limitado destinado à venda em concertos. Para que, tal como um fotógrafo
de casamentos, seja disponibilizada a grande foto final de um processo feliz
para quem queira fazer parte dele. Muito provavelmente um cd digipack com o nosso artwork.
E para o novo
ano, que projetos estão previstos para os MulherHomem?
Muitos concertos ao vivo se possível, terminar a
composição do 3º disco, fazer mais videoclips
e seguir irresponsavelmente na cena rock
nacional.
Mais uma vez
obrigado. Querem acrescentar mais alguma coisa?
Queremos agradecer-te!
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