Diz o
povo que mais vale poucos, mas bons. Um ditado que se aplica perfeitamente aos
My Enchantment. A banda tem mais de 20 anos de carreira e apenas dois
longa-duração e dois EPs, o mais recente dos quais, Malebolge, motivo da nossa conversa com o coletivo
lisboeta. É uma produção escassa, mas de elevada qualidade que é, afinal, o que
mais interessa. Este trabalho marca o segundo capítulo da trilogia em torno de A
Divina Comédia de Dante, iniciada com Saligia, em 2019 e marca,
também, uma renovação do line-up dando inicio a uma nova era na banda.
Olá, pessoal, tudo bem?
Com uma carreira que se estende por cerca de 20 anos, o vosso pecúlio em termos
de álbuns, não é muito forte. A que acham que se deve isso?
Olá Pedro e Via Nocturna! Sim, talvez peque por ser
um pouco escasso, sobretudo tendo em conta os anos que já temos. Mas ainda
assim achamos que são representativos da evolução da banda ao longo desse
tempo, num subgénero do metal que até nem se faz muito por cá. Mas os
álbuns acabaram por aparecer sempre na altura certa de maneira a capturar a
essência da banda em determinado momento, e nesse sentido achamos que isso foi
perfeito. Por outro lado, existiram algumas situações que aconteceram em
momentos-chave do nosso percurso e que acabaram por determinar o nosso destino.
Por exemplo, o álbum que se seguiria ao Sinphonic estava praticamente
concluído e as gravações quase terminadas quando alguns elementos decidiram
sair. Esse álbum acabou por nunca ver a luz do dia, apesar de tocarmos alguns
dos temas ao vivo desde então. Nos meses anteriores à saída do Saligia,
por exemplo, tivemos imensos problemas nas gravações e captações, em arranjar
tempo e horários compatíveis com o estúdio e a nossa vida pessoal, e acabámos
por demorar mais tempo do que tencionávamos nessa parte, apesar de ter valido a
pena, porque as captações foram excelentes e o resultado final foi exatamente o
que queríamos. Mas levámos mais dois anos do que o previsto até finalmente
lançar esse álbum. Todas estas situações acumuladas levam de facto a que o
nosso percurso talvez tenha menos um ou dois álbuns do que merecia devidamente.
Ainda assim, o mais
recente foi Saligia de 2019. Como foi na altura a receção,
sabendo que pouco depois a pandemia fecharia Portugal e o mundo?
A receção foi muito boa! Desde o concerto de
lançamento que sentimos que o público gostou dos temas e do conceito do Saligia,
e nesse ano tivemos imensos concertos, inclusive o nosso primeiro concerto
“internacional” em Espanha, que foi algo que nos deu imenso prazer e satisfação
como marco histórico, por assim dizer. As bandas também sobrevivem destas pequenas
coisas que sobretudo nos dão uma motivação extra para continuar a fazer aquilo
que gostamos. Mas, mais uma vez, não conseguimos dar a devida continuidade,
pouco depois, como referiste, a pandemia assolou tudo e todos. Mas o conceito
já tinha nascido e sabíamos o que iríamos fazer de seguida, a trilogia que
decidimos lançar.
Três anos depois surge Malebolge, o EP que
representa o segundo capítulo da vossa trilogia a respeito da Divina Comédia de
Dante. O que vos motivou a criar uma obra musical inspirada nesse clássico?
Depois de termos lançado The Death Of Silence,
sabíamos que queríamos fazer um álbum conceptual, que era algo que todos nós
gostávamos de ouvir nas nossas bandas preferidas. A única coisa que não
tínhamos era o tema. Nesse sentido tivemos várias e longas conversas sobre qual
o melhor tema para escrever música e vimos que estávamos sempre a voltar ao
mesmo tema, que andava à volta da mortalidade do homem e dos sete pecados
mortais. Outra coisa que não queríamos era abordar o tema de uma perspetiva
teológica, por isso fizemos umas pesquisas, umas leituras, e uma das obras mais
aclamadas sobre o assunto é sem dúvida A Divina Comédia, de Dante. A perspetiva que ele nos dava
era muito mais próxima daquilo que pretendíamos, por isso o que fizemos foi
mais uma adaptação inspirada em factos reais das nossas vidas e dos pecados da
Humanidade nos dias de hoje. Era uma perspetiva que nos dava uma base sólida
para o conteúdo lírico, mas também que se adaptava na perfeição a alguns dos
temas que já estávamos a compor na altura, que na sua maioria ainda não tinham
voz nem letra. A partir daí, com o conceito encontrado e com uma direção
identificada, foi mais simples escrever e compor e as músicas desenrolaram-se
muito facilmente e num curto espaço de tempo. Sabíamos também que, tal como a
obra que nos inspirou, iríamos ter uma trilogia, separada mais ou menos nos
mesmos moldes em termos de capítulos: uma primeira parte dedicada ao Inferno,
com a queda do ser humano e os sete pecados mortais do Saligia; uma
segunda parte sobre a sensação de dor, perda e sobre como escapar do abismo com
o Malebolge, mas que desde logo sabíamos que iria ser uma parte mais
curta da história e, por isso, criámos em EP; e uma terceira parte, sobre a
qual ainda não podemos levantar muito o véu, mas cujo tema será a redenção
final (ou não) do ser humano e a vitória (ou não) sobre as suas fraquezas.
Sendo esta a segunda
parte de uma trilogia, já estão a trabalhar na parte final?
Sim, já há algum tempo que estamos a trabalhar
nela, podemos até adiantar que temos a parte lírica completamente escrita e
cerca de dois terços das músicas que queremos que componham o álbum também já
estão criadas, sendo que as restantes estão bem encaminhadas, mas ainda não
estão completas. Falta-nos ainda finalizar a sequência em que as músicas ficarão
neste novo trabalho e como vão encaixar umas com as outras. Queremos mesmo que
seja a parte final da viagem e que também isso se faça sentir no ouvinte, por
isso queremos ter algum cuidado com esta parte também.
O facto de termos
vivido uma pandemia, foi positivo ou negativo, na vossa opinião, para avançar
com esta segunda parte?
Essa é uma pergunta difícil de responder. Depois do
lançamento do Saligia já tínhamos algumas coisas compostas, mas era mais
uns riffs soltos e umas malhas aqui e ali. Estávamos a tocar
bastante ao vivo e, uma vez que estávamos a tocar o Saligia na íntegra
nos concertos desse ano, ensaiávamos muito o setlist para os concertos,
para nos assegurarmos que ao vivo as músicas iriam soar tal e qual como no
álbum, e isso deixou pouco tempo para avançar na composição. Nesse sentido,
quase que podemos dizer que a pandemia teve um efeito positivo, pelo que nos
fez avançar na composição e na criação do Malebolge. Mas os efeitos
negativos também se sentiram, porque entrámos numa altura muito complicada de
gerir. Nós, em concreto, tivemos de nos adaptar obviamente a uma nova forma de
composição, mas também de contacto, tudo em formato virtual, e isso não foi
nada fácil. Estávamos habituados a uma determinada química de composição na
sala de ensaio e passámos a ter de compor em casa, enviando ideias, partes de
músicas ou riffs uns aos outros para cada um ir gravando a sua parte, ou
músicas completas por alguém para debatermos ideias sobre a estrutura e
alterarmos algumas coisas de acordo com as ideias de todos, o processo em si
tornou-se mais lento e moroso. Obviamente que isto é muito mais simples numa atmosfera
de estúdio, onde estamos todos e podemos trabalhar sobre as músicas diretamente
e no momento, a verdade é que andámos com algumas malhas para a frente e
para trás muitas vezes por causa disto. Para além disso, o desgaste provocado
pelo trabalho a partir de casa também retirou alguma vontade de continuarmos
agarrados aos PCs, depois de um longo dia de trabalho, para nos dedicarmos à
música, havia simplesmente dias em que essa vontade não existia. O ir para uma
sala de ensaio é para nós um momento de escape e de camaradagem, sem essa
componente tornou-se algo como mais uma tarefa para ficarmos ainda mais horas
em frente a um monitor a tentar captar ideias que nos iam na cabeça. A verdade
é que, a bem ou a mal, também nos tivemos de adaptar a esta nova realidade e
encontrar uma forma de trabalhar minimamente profícua, basicamente era isso ou
parar e como não sabíamos quanto tempo iríamos ficar neste impasse, resolvemos
trabalhar.
Musicalmente, parece
termos agora uns My Enchantment com uma ligeira menor orientação para as
componentes sinfónicas. Concordam? Foi premeditado ou simplesmente foi para
onde a composição vos levou?
Concordamos que existe, de facto, uma alteração na
sonoridade, aquilo que fazemos agora está claramente distante do Sinphonic,
pensamos que a componente gótica/industrial que marcou um pouco os nossos
primórdios se foi perdendo naturalmente, mas foi mais resultado de uma evolução
natural de uma banda com 20 anos de atividade. As entradas e saídas de
elementos também promovem essas alterações, uma vez que todos temos influências
diferentes, apesar de termos muitas bandas que todos gostamos. Mas gostamos de
ver que, apesar de tudo, existe um fio condutor no caminho que percorremos e
que tentamos manter algumas das caraterísticas da génese da banda, como são a
parte mais melódica e sinfónica, como referiste e que ainda existe, mas também
que haja muita dinâmica nas músicas, com partes mais calmas e melódicas de
teclados, que contrastam com a agressividade das guitarras e da voz. Esta
sempre foi, no fundo, a nossa principal caraterística, e que tentamos ao máximo
manter. Mas não somos escravos de nenhum arquétipo prédesignado, se a
composição e a sua estrutura e diferentes partes fazem sentido para nós na sua
componente musical, se acompanham a componente lírica, e se traduzem de facto
aquilo que queremos fazer sentir a nós próprios e aos ouvintes, isso para nós é
o mais importante.
Que vídeos/singles já lançaram
retirados deste trabalho?
Lançámos dois oficial audio tracks do Saligia,
o Canto II Avaretia, e o Canto VI Ira. Para o Malebolge,
avançámos o single e lyric vídeo Lex Talionis.
Já apresentaram este
disco ao vivo? Há planos para continuar?
Sim, apresentámos oficialmente o Malebolge
no RCA em Lisboa, no passado dia 18 de novembro de 2022. Temos já pelo menos
mais sete datas marcadas para continuarmos a apresentar o EP e as quatro
músicas que o compõem, entre os meses de abril e outubro, e estamos em
negociações para apresentarmos ainda mais algumas datas, vamos ver o que vai
acontecer, o ano ainda vai no começo e ainda há muito caminho a percorrer.
Nesse sentido, sempre fomos persistentes, achamos que os vinte anos de
existência assim o comprovam, continuamos por cá e esperamos continuar durante
muito mais tempo a fazer aquilo que gostamos, a dar concertos, a compor novos
temas e a lançar mais registos.
Obrigado, pessoal. Querem acrescentar mais alguma coisa?
Obrigado, Pedro e Via Nocturna! Esperamos ver-vos
na estrada. Ao público em geral e especificamente ao do metal underground,
que continuem a ir ver as bandas ao vivo, há muitos festivais e concertos em
locais com excelente organização e boas bandas, vale bem a pena sair de casa, e
os concertos ao vivo são para nós o culminar de um longo processo de trabalho,
onde damos tudo e temos a grande motivação de mostrar músicas novas e tocar
outros temas que fazem a história da banda, mas também onde temos o prazer de
conversar e conviver com o público, que é sempre gratificante e importante. Por
isso apareçam, desfrutem dos concertos e interajam com as bandas! Abraços!
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