As músicas de José Afonso são intemporais e têm
servido para os mais diversificados tratamentos musicais e estilísticos. Mas
poucos devem ter atingido o nível de originalidade da roupagem que Amílcar
Vasquez-Dias lhes deu. Acompanhado pelo violinista Luís Pacheco Cunha, os dois
estudiosos e criadores musicais provocaram uma autêntica revolução na música de
Zeca com as suas originais partituras onde ainda se incluem algumas vozes
emblemáticas. O duo de criadores e instrumentistas juntou-se para nos falar
deste inovador projeto.
Olá, Amílcar e Luís,
antes de mais podem apresentar-nos as pessoas e os músicos Amílcar Vasques-Dias
e Luís Pacheco Cunha?
Eu,
Amílcar Vasques-Dias fui o autor,
compositor e pianista de De Ouvido e Coração
em colaboração muito estreita – desde o início do projeto – com o violinista Luís Pacheco Cunha.
A vossa obra é vasta em
diversos estilos musicais. Se vos perguntasse onde se sentem mais à vontade ou que
projeto deu mais gozo fazer, o que me responderiam?
Eu
e Luís ‘vimos’ da música erudita. A minha formação é formal em conservatórios
de Portugal e Holanda, essencialmente, porque participei em muitos cursos um
pouco por todo o mundo, EUA, França, Canadá. O Luís P. Cunha estudou em
Portugal, Suíça, Inglaterra e na Rússia. Fui para a Holanda estudar Composição com
uma bolsa da Fundação Gulbenkian em 1974. Nos anos 70 não se ouvia música
tradicional nos conservatórios portugueses, mas mal cheguei ao Real
Conservatório de Haia, o meu professor Louis Andriessen deu-me como 1º trabalho
a composição para a sua orquestra de sopros De
Volharding (A Persistência em
português), de Grândola Vila Morena.
Tinha acabado de acontecer a revolução portuguesa em 25 de Abril e o meu estimado
professor/compositor não foi indiferente aos acontecimentos em Portugal... A
formação desta orquestra não se podia considerar ‘clássica’, hoje diríamos que
era ‘alternativa’ tanto nos temas em voga nos anos 70 (p.ex.: hinos de
libertação) como na instrumentação (preponderância de metais + piano e
contrabaixo). A minha obra é bastante diversificada, desde composição para
piano solo, música electroacústica, orquestra, ópera, ou arranjos de música
tradicional, que faço todos com gozo e empenho.
E quanto a fazer estas
recriações de temas do Zeca Afonso? Quando surgiu a ideia?
A
ideia surgiu depois do meu encontro com José
Afonso em 1978 em Amsterdão aquando de uma sua tournée em que eu fui o seu tradutor. Eu já tinha editado na
Holanda três partituras de músicas de José
Afonso: - Grândola Vila Morena, Cantar Alentejano e Coro da Primavera, para as quais precisava de autorização do
próprio autor. Esta autorização – no âmbito da nossa rica e intensa conversa –
alargou-se a toda sua a produção musical. A nossa maravilhosa conversa sobre
Música, levou-me a pensar e a escolher as minhas canções preferidas. Quando
voltei para Portugal em 1988, na 1ª experiência pública que tive ao piano, com
música de José Afonso, apresentei
uma ‘sequência’ de três canções em forma de sonata
contemporânea! Ora, eu julguei que as caraterísticas da música de José Afonso, na sua riqueza melódica, na
alternância de registos (grave, médio e agudo), nos tempi (rápido e lento), e, finalmente, no timbre ‘suave e direto’ da
sua voz, ‘mereciam’ uma moldura clássica! O ‘meu piano’ de harmonias e timbres,
o violino – instrumento melódico por excelência! - e uma voz lírica, faziam
sentido na construção deste projeto. Também o nome do CD: De Ouvido e Coração, surge a partir da sua resposta ao jornalista
da rádio Hilversum 4 no
Concertgebouw de Amesterdão em que José
Afonso diz - em francês – que ‘não sabe música’, faz música ‘de ouvido e
coração’!
Amílcar, achas que o
facto de teres lidado com ele te ajudou a melhor desenvolver estas novas
abordagens?
Sim,
muito! Quando ele canta para mim, nesse tal encontro num banco de jardim, uma
linda canção de Trás-os-Montes – que eu não conhecia – Ó Que Janela Tão Alta, e, na sua linda voz, sobe até ao agudo perfazendo
um intervalo de 10ª, e eu comento que na música tradicional não se usa uma
tessitura tão extensa, ele, que conhecia bem as potencialidades da sua voz,
responde-me: Ah, mas é que eu gosto de acrescentar sempre ‘algo meu’ à música
de outros! Ao que retorqui: então eu também posso acrescentar ‘algo meu’ à sua
música!? Resposta imediata de José
Afonso: ‘Claro! É isso que mantém a música viva!’
Este projeto já tinha
sido apresentado ao vivo. Quando surgiu e quais foram os objetivos ao passar
para CD e digital?
Sim, foi apresentado desde os anos 90, em inúmeros concertos em Portugal, em Espanha e na Holanda. Todos nós temos carreiras para além deste projeto. Juntar os dois instrumentistas, ter um piano de concerto disponível, e quatro cantores, não é fácil. Por outro lado, as partituras foram sendo enriquecidas ao longo de mais de 20 anos!
E porque especificamente
a abordagem para piano e violino? E quando é que surge o Luís Pacheco Cunha?
Disse
mais acima as razões da escolha do piano e do violino. Conheci o violinista Luís Pacheco Cunha em meados dos anos
90. O Luís é um daqueles violinistas que gosta de ouvir o seu instrumento. As
suas formações preferidas são as de solista e 1º violino do quarteto de cordas.
Lembro que foi o fundador do Quarteto de
Cordas Lopes-Graça! Dadas as suas capacidades técnicas e musicais aliadas
ao ‘som único’ do seu violino, dado o seu gosto por desafios, e a sua admiração
pela música de José Afonso, julguei
ser o meu parceiro ideal! Felizmente aceitou logo o meu convite!
De que forma
trabalharam os arranjos para os dois instrumentos, sendo que alguns dos temas
levaram uma verdadeira reviravolta?
Eu
escrevi todos os arranjos em partitura. Tanto o 1º solista do projeto, o tenor Carlos Guilherme, como o Luís e eu,
obviamente lemos música! A ‘reviravolta’ já estava intencionalmente na partitura!
É claro que tanto em concerto como no registo CD há momentos de ‘certos’ improvisos
(acontecem, e não estão escritos).
Para as vozes, há a
participação de cantores com registos muito diferenciados. Antes de mais querem
apresentá-las e dizer como se proporcionou essa ligação?
O
tenor Carlos Guilherme, cantor
lírico sobejamente conhecido do Teatro
Nacional de S. Carlos acedeu com espontaneidade ao meu convite. A soprano
lírica Natasa Sibalic, com a sua voz
coloratura, uma voz leve e de extrema agilidade,
era o contraponto ideal à voz da cantaora
flamenca Esther
Merino, de voz grave e dramática. Ambas começaram a
participar no projeto em 2012. O intérprete/cantor Ricardo Ribeiro, convidado para participar na gravação do CD,
mostrou especial prazer em interpretar a canção Que Amor Não Me Engana.
Particularmente importante,
na minha opinião, é a participação da Esther Merino que confere um registo
totalmente inovador a estas canções. Qual foi a intenção em a convidar?
Eu
gostava de fazer uma ‘experiência’ com um tipo de voz ligado à música flamenca
cantando o Cantar Alentejano de José Afonso. Por informação de um aluno
meu espanhol, fui a Badajoz convidar a Esther
Merino a quem entreguei a gravação de Cantar
Alentejano. Qual o meu espanto quando ao fim de duas semanas, a Esther me
contacta para vir a minha casa fazer a sua interpretação da canção! Sentei-me
ao piano, dei-lhe o tom, toquei um bocado da introdução e ela começou...Chamava-se
Catarina... Arrepiei-me quase às lágrimas e pensei: o José Afonso teria ‘adorado’ ouvir isto... Um pormenor: Esther Merino cantou o Cantar Alentejano em dois concertos
memoráveis os dois no Coliseu dos Recreios em Lisboa: no 1º Festival de
Flamenco de Lisboa - com o público aplaudindo em pé - e no grande concerto
comemorativo dos 40 anos do concerto de José
Afonso no Coliseu - ambos acompanhados por mim e pelo Luís P. Cunha. Em concerto, a Esther cantava sempre uma canção do
repertório flamenco, Nana del Caballo Grande,
uma canção de Federico Garcia Llorca
com arranjo meu. Ora, o José Afonso
também tinha uma canção de embalar e assim, Esther começa também a cantar a Canção de Embalar!
Deram alguma indicação
específica a esses convidados cantores?
Os
habituais do projeto conheciam o repertório. Ao Ricardo Ribeiro, aquando do convite que lhe dirigi, propus que
interpretasse conforme o seu saber e gosto, não se preocupando com a partitura
de piano e violino de Que Amor Não Me Engana
pois estava feita conforme a versão de J. Afonso. Intuitivamente ele podia ser
musicalmente livre! E foi...!
Que outros projetos têm
em mão ou planeados para os próximos tempos?
Tenho
uma encomenda para um quinteto de cordas, e provavelmente uma ópera para as
comemorações do 25 de Abril em 2024.
Obrigado, Amílcar e Luís. Querem acrescentar algo mais?
Gostávamos
que muitas pessoas conhecessem este CD. A música de José Afonso é tão estruturada e tão sentida e tão pensada, que
podemos dar-lhe uma grande ‘reviravolta’ que ela continua a ser a música de José Afonso ‘de ouvido e coração’!
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