Entrevista: Rogério Charraz

 

Quando a música se cruza com histórias do quotidiano e encontra nos pormenores a sua maior força, o resultado é algo que nos interpela e nos faz refletir. Assim tem sido o percurso de Rogério Charraz, um artista que transforma vidas e narrativas em melodias e letras que tocam fundo. Depois de surpreender com Reunião de Condomínio e revisitar O Coreto, o próximo capítulo já começa a desenhar-se no horizonte. Mas o que inspira este contador de histórias? E como se desenrolam os bastidores criativos de um músico que não tem medo de ousar? É isso que procuramos desvendar nesta conversa franca e cheia de curiosidades.

 

Olá, Rogério, tudo bem? Como tens passado? Mais uma vez, obrigado pela disponibilidade. Depois de O Coreto, lançaste, há cerca de um ano, Reunião de Condomínio, um conceito muito original. Como surgiu a ideia de tratar a vida de um condomínio como metáfora para as relações humanas?

Olha, ao contrário do Coreto, que começou por ser uma ideia minha, desta vez foi o Zé Fialho que me propôs este desafio. Todos nós quando olhamos para um prédio temos a curiosidade de saber como é a vida das pessoas que habitam cada uma daquelas casas. Partimos desse pressuposto para criar um prédio imaginário, desenhar histórias que abordassem temas que nos interessam e que façam as pessoas pensar na nossa sociedade atual e na maneira como está organizada.

 

Mais uma vez, a história esteve a cargo do José Fialho Gouveia. Como foi o processo de colaboração entre vocês, desta vez? Houve alguma letra que te tenha surpreendido especialmente?

O começo do processo foi o que te expliquei na resposta anterior. A partir daí fomos definindo quais os assuntos e quais as histórias que queríamos contar, e o processo de criação foi o de sempre: ele faz as letras primeiro, eu dou-lhes corpo sonoro. Há uma letra que é muito delicada e que na verdade já existia antes e nós decidimos trazer para este projeto. É o Amanhã à Mesma Hora, uma letra que o Zé fez há muitos anos para o Pai, e que já me tinha passado há algum tempo. Acho que é uma letra incrível, muito subtil e ternurenta e foi das vezes em que senti mais a responsabilidade da música ter que estar à altura da letra e da mensagem.

 

As músicas do álbum abordam questões sociais e humanas. Qual a mensagem principal que gostarias que o público retirasse ao ouvir Reunião de Condomínio?

Acima de tudo queremos que as pessoas pensem nas várias questões que levantamos. Como é que estamos a receber aqueles que vêm para cá trabalhar e como é que será agarrar na nossa vida toda e recomeçar do zero noutro país? Como é que estamos a criar os nossos filhos a partir do momento em que nos divorciamos do pai ou da mãe deles? Como será viver a 200 km de casa, deixar a família e os amigos durante a semana, para podermos exercer o trabalho que amamos? Se as pessoas pensarem nestas e noutras questões que estão subjacentes a este disco, para nós é uma vitória.

 

E em termos de composição, como desenvolveste o processo desta vez, até tendo em conta a complexidade trazida por uma panóplia de instrumentos utilizados?

O método acaba por ser sempre o mesmo. A canção nasce com guitarra e voz, e depois é olhar para ela e tentar perceber o que é que pede de roupagem sonora. Quando tínhamos seis canções alinhavadas, fomos para o estúdio com alguns músicos que já trabalham connosco há algum tempo (Jaume Pradas na bateria, Nuno Oliveira no baixo, Marco Reis nas guitarras e João Rato no piano) e juntos fomos desenhando os arranjos e registando ideias. Como percebi que a coisa estava a funcionar, achámos que não fazia sentido estar a chamar um produtor, porque estávamos felizes com o resultado. Depois, houve outro elemento fundamental, que também trabalha connosco há muitos anos, o Paulo Loureiro, que fez os arranjos de cordas e de sopros, que estão incríveis. No final, os “acabamentos” com as percussões do João Ferreira, as vozes da Mariana Norton e da Margarida Campelo (foram maravilhosas!!), a guitarra portuguesa do Bernardo Couto e o acordeão do João Barradas e do Carlos Lopes... um luxo!

 

Este álbum conta com vários convidados. Qual foi o critério para a escolha dos artistas que participaram? Há alguma colaboração que tenha tido um significado especial para ti?

O critério foi olhar para as personagens e perceber que vozes lhe podiam dar corpo. O Vista Para Ficar fala de um casal de brasileiros que vem viver para Portugal, então queríamos uma cantora brasileira que morasse cá, e descobrimos a Luciana Balby, que todo o país precisa conhecer urgentemente! No caso da Catarinha Munhá, já éramos fãs da música dela há algum tempo e a primeira canção que fizemos deste disco (Mágoas Furtadas), a letra foi inspirada por uma canção dela. Já o Quim Barreiros, foi mesmo o desafio de pô-lo a cantar outro registo a que ele não está habituado, o que ele fez com mestria porque é muito bom músico. Acho que ninguém me imaginaria a fazer um dueto com o Quim, e gosto muito de surpreender quem já me conhece bem e acompanha há muitos anos...

 

O álbum é apresentado num espetacular CD-Livro. Por que decidiste seguir esse formato e o que acrescenta à experiência do ouvinte ou contribui para a imersão na narrativa do álbum?

Queríamos que o disco tivesse um formato retangular, para reforçar a ideia de ser um prédio. Por outro lado, o facto do disco ter sido feito ao abrigo do apoio Garantir Cultura, permitiu-nos ter algumas condições que normalmente não temos. Então decidimos apostar em criar um objeto que trouxesse uma mais-valia e desse vontade às pessoas de o ter, até para poderem acompanhar melhor as histórias que contamos e todo o seu contexto.

 

As ilustrações de Samuel Úria acrescentam uma dimensão visual única ao álbum. Como foi a colaboração com ele e de que forma essas ilustrações ajudam a complementar ou expandir a narrativa musical?

Olha, foi mesmo muito fácil. Assim que falámos com ele, aceitou mesmo antes de saber qual era o conceito e quais as canções, porque diz que gostava muito de nós e da nossa música! As ilustrações são de tal maneira importantes para este disco, que decidimos levá-las para o palco e projetá-las durante o concerto. Ajuda muito a tornar as personagens reais e a fazer as pessoas entrarem dentro das suas histórias...

 

Sabemos que estás a preparar um novo álbum a ser lançado em 2025, Anónimos de Abril. O que nos podes desde já adiantar sobre este trabalho?

É um disco onde vou finalmente conseguir fazer algo que desejava há muito tempo: rodar as canções ao vivo antes de as gravar! Este espetáculo estreou em janeiro, no centenário do Teatro Tivoli, e fizemos 16 concertos ao longo do ano, de Paredes de Coura a Tavira! Para além disso, será um livro/disco, onde o Zé Fialho Gouveia vai aprofundar mais as histórias que contamos nas canções, e onde vamos ter fotografias e também ilustração. Estamos neste momento muito empenhados em finalizá-lo o mais rapidamente possível, para conseguirmos ter uma data de lançamento mais concreta, sendo que será seguramente no primeiro trimestre de 2025.

 

O conceito por trás desse álbum será fácil de imaginar. Mas porque não foi lançado este ano, ano de todas as comemorações?

Por duas razões: primeiro porque tínhamos acabado de lançar o Reunião de Condomínio, e depois porque o espetáculo teve tanta aceitação dos programadores e do público, que sentimos que não havia necessidade de estarmos a fazer as coisas à pressa. Até porque este trabalho não se esgota nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. É algo que queremos continuar a fazer como forma de registo coletivo de memória, até porque ao longo dos vários concertos nos têm chegado novas histórias de gente ainda mais anónima, que queremos retratar em novas canções.

 

Esse álbum já tem sido apresentado na estrada. Primeiro, como tem sido a receção a canções que ainda não foram lançadas e segundo, essa apresentação ao vivo tem trazido vontade de mudar alguma coisa nessas canções?

A reação tem sido incrível! Fizemos quase duas dezenas de concertos, quase sempre com as salas muito preenchidas e muitas reações do público nas salas e depois nas redes sociais. É um espetáculo que emociona muito as pessoas, pelas histórias, pelas canções e também pela videografia que é projetada durante o concerto. Quanto aos arranjos, fomos trabalhando alguns pormenores ao longo do ano, até porque houve algumas mudanças na equipa em relação à estreia no Tivoli, mas para o disco fizemos só pequenos acertos, mais a ver com as estruturas porque há coisas que funcionam ao vivo, mas em disco têm que ser diferentes. E acrescentámos um instrumento: o trompete!

 

Curiosamente, para além desse espetáculo, tens mais dois na estrada. Um baseado neste Reunião de Condomínio e outro ainda sobre O Coreto. É fácil toda essa logística?

Fácil não é, até porque temos duas equipas diferentes, uma que faz os Anónimos e outra que faz Coreto e Reunião de Condomínio. Mas acaba por ser bom porque, por um lado, permitiu que tivéssemos um ano de muita estrada, de janeiro a dezembro, e por outro, qualquer um dos três nos dá muito gozo fazer e acabamos por não nos cansar de nenhum, porque temos alternado muito entre eles.

 

Nesta temática, quais serão as próximas datas já agendadas e para que concerto?

Fechamos o ano com O Coreto em Idanha-a-Nova, com a Filarmónica Idanhense, e estamos já com datas confirmadas e outras reservadas para 2025, que anunciaremos em breve. Vamos continuar com os três espetáculos na estrada, todos eles já com datas em perspetiva, e continuaremos a apostar nesta dinâmica com coros e filarmónicas locais, que nos trouxe momentos incríveis no ano que agora termina!

 

Obrigado pela entrevista, Rogério. Queres deixar alguma mensagem final?

Gostava só de dizer que ainda não tive oportunidade de tocar em Moimenta da Beira e gostava muito que isso se concretizasse já em 2025! Talvez no fantástico coreto de Leomil... Grande abraço!

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