Num universo musical marcado pela fusão de estilos e
pela busca incessante por uma identidade única, os Gatos Bomba emergem como um
nome que surpreende com sua abordagem criativa. Oriundos do Barreiro, uma
cidade repleta de herança cultural e musical, o coletivo apresenta A Alegria de Estar Desaparecido,
reafirmando o seu compromisso com a autenticidade e com as raízes locais. Nesta
entrevista, mergulhamos nos detalhes do percurso dos Gatos Bomba, descobrindo
as histórias, inspirações e aspirações que moldam sua jornada.
Olá,
pessoal, tudo bem? Obrigado pela disponibilidade. Para começar, podes falar
deste projeto Gatos Bomba? Quando começaram e como tem sido o vosso trajeto até
aqui?
Olá! Tudo bem, graças a Deus.
Esperamos que convosco também. Ora essa, nós é que agradecemos. Depende de onde
quisermos marcar o início. Como conjunto de indivíduos, colegas e amigos de
longa data, já todos fazemos música juntos desde pequenos, em diferentes
configurações e com diferentes propósitos. Esta configuração particular tem-se
vindo a aglomerar naturalmente à medida que o João, o vocalista, ia preparando
o disco, que originalmente iria lançar em nome próprio. Juntando os diferentes
elementos para as gravações e para eventuais espetáculos, notou-se que o funcionamento
e a própria natureza do projeto já estava mais para banda que para
acompanhamento de um artista a solo, por isso decidimos apresentar-nos assim.
Esta decisão data de junho deste ano, 2024.
O nome Gatos Bomba tem uma origem curiosa e simbólica ligada a
uma tática militar experimental. Porque escolheram este nome? Sentem que ele
encapsula a vossa música e a vossa visão do mundo?
Sim, encapsula,
sem dúvida. Há algo que nos impacta muito, com que nos identificamos bastante,
na imagem de um ser completamente ignorante e confuso a ser atirado subitamente
para um campo de batalha para explodir e morrer numa guerra violentíssima que
na verdade não lhe diz respeito e que cujas causas estão infinitamente além da
sua capacidade de compreensão. Anda sempre connosco, esta imagem. De resto,
devemos dizer que é um nome que já nos acompanha há algum tempo, tratando-se da
simples versão para o português do nome da banda de punk que tínhamos
quando éramos pequeninos, os Cat Bombs. Serve-nos assim, intimamente, como
símbolo da nossa (relativa) maturidade, mas também de compromisso com as nossas
origens. Outro motivo é que serviu de proteção contra o tipo de nome pedante ou
deprimente que o João fosse querer dar agora ao projeto se tivesse de lhe dar algum
de fresco. Senão seriamos os “Órfãos Galegos”, os “Fúria de Polifemo”, os “Aqueles
Grandes Rios Eufrates”, ou alguma outra merda assim, conhecendo-o.
A vossa música mistura elementos aparentemente contrastantes,
como a música popular portuguesa, o punk
e até referências à cúmbia villera. Como encontraram este equilíbrio
entre o tradicional e o alternativo?
O equilíbrio foi
relativamente fácil de encontrar, pois ele já se encontrava nas nossas próprias
almas. Todos temos por ascendência e experiência alguma ligação afetiva à
música tradicional, contrastada com o amor também pelas músicas modernas
variadíssimas a que fomos expostos durante o nosso crescimento. É uma
conjugação muito cómoda para nós.
Como é o vosso processo criativo enquanto banda? Partem de
letras ou de uma sonoridade específica?
As nossas canções
costumam nascer todas a partir de alguma pequena ideia que surge
espontaneamente, alguma melodia ou malha ou sequência de acordes em certo
ritmo, cujo rasto vamos seguindo até chegarmos a alguma coisa que pareça
completa. Gostamos de pensar em termos platónicos, onde as canções de certa
forma já existem no mundo eterno das ideias perfeitas e nós as vamos
simplesmente desenterrando, com todos os danos que qualquer processo de
exumação implica, e tentando dispor aqui, no nosso, da maneira mais fiel e
intacta possível.
Os títulos das vossas músicas parecem funcionar quase como uma
declaração de estilos ou influências. Foi intencional esta ideia de nomear as
canções como "manifestações" dos vossos géneros e identidades?
Que observação
interessante, não tínhamos ainda pensado imenso sobre isso! Gostamos
simplesmente da convenção portuguesa de intitular canções: “[estilo] do [tema
abordado]”, passe-se a fórmula, que de facto permite guiar o entendimento
do ouvinte para certos aspetos temáticos e estilísticos que quisemos destacar,
e que também acaba por dar um encanto extra às canções. Supomos que, no
entanto, a principal influência por isto declarada é a de Vitorino Salomé,
que melhor que ninguém soube usar dessa convenção para belo efeito.
O acordeão é um elemento que se destaca no vosso som. Que papel
atribuem a este instrumento na fusão dos géneros que exploram?
O acordeão é
lindo e serve de declaração de interesses. Simbolicamente, é como um sinal
luminoso que diz “SIM, ISTO É MÚSICA POPULAR PORTUGUESA”, e para nós e para as
nossas intenções é muito importante que isso se mantenha sempre óbvio. Há mais
dois aspetos: um, convencional, é que a nossa música acaba por ser
particularmente indicada para ocasiões onde se dá amplamente o consumo de
álcool, e aquilo que o órgão está para a religião, o acordeão está para a
embriaguez. Outro, técnico, é que neste tipo de música é muito importante haver
uma dinâmica de chamada e resposta entre a voz e algum instrumento melódico, como
no fado com a guitarra portuguesa e no tango com o bandoneón. Ele cumpre
aqui essa função, belamente. De resto, importa dizer que não se trata de
qualquer acordeão. O Inácio é um músico genial e sem ele nada do que fazemos
seria metade do bem conseguido que é.
O título do álbum, A
Alegria de Estar Desaparecido, tem uma conotação algo poética e ao mesmo
tempo rebelde. Que mensagem ou conceito pretendem transmitir com este título?
Num momento
histórico onde estamos todos tão brutalmente ligados, expostos e alcançáveis
por qualquer um a qualquer altura, o estar-se verdadeiramente desaparecido, por
um segundo que seja, surge como uma das mais finas delícias que o mundo de hoje
tem para oferecer. Ao João, pelo menos. Foi ele que teve a ideia do título. Já
lhe tentámos explicar que o novo paradigma de comunicação é muito benéfico para
bandas alternativas como a nossa e que, apesar de “conduzir as multidões
desprevenidas a um estado de esquizofrenia induzida onde o não mediado se torna
irreal”, de ser “administrado cruelmente por conclaves anónimos compostos por
indivíduos interessados sobretudo em perverter todos os valores autenticamente
humanos” e de “pôr nas mãos de governos totalitários uma soma obscena de
informação sobre cada indivíduo, possibilitando tipos de tirania antes
inimagináveis” (como ele diz), também tem lados bons, como o podermos partilhar
a nossa música, falar com os nossos queridos ouvintes e o estarmos a dar esta
mesma entrevista ao Pedro Carvalho do Via Nocturna, que
aproveitamos para uma vez mais agradecer. Mas ele está-se nas tintas, é um
doente. O carapuço que o boneco da capa do disco usa, ele queria usar nos
concertos. Para terem uma ideia.
Sendo oriundos do Barreiro, uma cidade com uma forte cena
musical e industrial, sentem que esse ambiente influenciou a vossa música e a
vossa atitude enquanto banda?
Absolutamente,
absolutamente, absolutamente. Imensos e importantíssimos aspetos da nossa
música não estariam lá se não fôssemos tão influenciados por toda a herança
cultural que recebemos por virtude de sermos barreirenses de segunda, terceira
ou incontável geração, nados e criados cá. A experiência de se crescer aqui é
riquíssima, tanto em coisas boas como em coisas menos boas. Conhecendo bem a
cidade e conhecendo bem os seus habitantes, tem-se contacto direto com a
história de Portugal inteira, e ainda mais agudamente com a do seu século XX. Gostaríamos
muito de colocar aqui todos os bens concretos dessa herança, mas sabemos que
são demasiados e demasiado complexos para os enumerarmos a todos aqui com
coerência e justiça. Resumamos assim: a nossa banda, uma banda como a nossa, só
poderia ter nascido no Barreiro, pelo que temos uma grande dívida a esta cidade
da qual muito nos orgulhamos. Esperamos chegar a valer o suficiente para
saldá-la.
Como veem a vossa música evoluir no futuro? Mantêm-se fiéis à
fusão atual ou gostariam de explorar novos territórios musicais e culturais?
Gostaríamos de
nunca perder a fidelidade a esta nossa intenção original, pois é ela a fonte de
todo o nosso ímpeto criativo. De resto, não nos parece que corramos esse risco,
pois não se trata de uma fonte facilmente esgotável. Há sempre novas avenidas
de criação alegres e interessantes que se nos dispõem a partir do nosso género.
Afigura-se que cada canção deste primeiro álbum sirva de semente simbólica das
várias vias que procuraremos percorrer e explorar ao longo do nosso percurso. Vale
a pena também assinalar que, nas nossas tradições musicais, este tipo de fusão
de estilos que praticamos não é nada de novo, e identificamo-nos como banda de música
popular portuguesa precisamente por isso. A nossa música popular, na
verdade assim como o nosso povo e a nossa língua, é e sempre foi marcadamente
dúctil, com extrema facilidade em assimilar novas influências e estilos sem jamais
perder a sua individualidade e originalidade inconfundivelmente portuguesa.
Obrigado pela entrevista, pessoal. Há algo mais que gostassem de
dizer aos vossos fãs ou aos nossos leitores?
Ora essa, nós é
que agradecemos. Gostaríamos de dizer muito, muito mais, mas temos demasiado
respeito pelo tempo limitado de vida e pelos limites da paciência do ser humano
para que o façamos. Talvez mais tarde, em pessoa, depois de algum concerto
nosso e de algumas cervejas. Estão todos convidados.
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