Do seu trabalho a solo ao emblemático percurso com os Navegante,
José Barros é uma figura incontornável no panorama cultural nacional tendo
dedicado décadas à preservação e reinvenção das sonoridades que definem a
identidade portuguesa. EnRaizado é o seu
novo registo musical e nela José Barros explora novas dimensões, abraçando
colaborações marcantes e fusões inesperadas, entre uma umbilical ligação às
origens e uma ousada abertura a influências globais. E, entre homenagens a
figuras como Cesária Évora e Fausto Bordalo Dias e a energia renovada que traz
aos palcos, José Barros prova que, mesmo enraizado, continua a crescer e a
surpreender.
Olá,
José, tudo bem? Obrigado pela disponibilidade. EnRaizado é o título do teu novo
álbum e reflete uma forte ligação às tuas origens. Como surgiu a ideia para
este projeto e o que ele representa para ti?
Este EnRaizado
é um disco pós-Covid e tudo o que significou essa pandemia que nos trouxe uma
realidade que desconhecíamos e/ou não esperávamos. É um disco alegre e fresco,
cantável por todos, mas sobretudo um disco diferente de todos os outros que já
tinha feito. Um disco de originais, 11 canções originais, com novos músicos que
claramente “obrigam” a uma nova leitura musical que resulta obviamente
diferente. A curiosidade do nome veio a propósito de eu ter dito aos amigos que
este meu novo disco seria muito diferente e ter tido a resposta deles de que
sim, talvez diferente, mas soaria sempre a mim e ao meu trabalho de sempre, ao
que eu respondi: - “então nesse caso sou eu mesmo que já estou Enraizado.....
Todas
as canções do álbum têm uma inspiração e/ou dedicatória muito específica, seja
cultural, histórica ou pessoal. Podes falar-nos sobre o processo de criação
destas homenagens?
Não foi pensado no início dos
trabalhos de criatividade e arranjos, na composição ou na construção dos
textos, que este disco teria dedicatórias e muito menos dedicatórias em todas
as 11 canções. A verdade é que o tempo foi determinando essas dedicatórias. No
primeiro dia de gravação deste disco em estúdio, entrámos às 10h no estúdio e a
notícia do dia foi a morte do meu amigo Fausto
Bordalo Dias. Não foi fácil, a minha amizade pelo Fausto tinha mais de 30
anos. Na noite que antecedeu a gravação da minha voz, faleceu durante a noite Armando Carvalheda, outro grande amigo
de há mais de 40 anos. No dia que fui buscar o disco à fábrica faleceu a Teresa Muge, amiga e colaboradora em
dois dos textos deste disco de que muito gosto...O Abelharuco era para ser dedicado por mim e pela Teresa aos 10 Anos
de Cante Alentejano, Património
Imaterial Cultural da Humanidade. Decidi, sabendo que a Teresa não estava
bem de saúde, que lhe queria dedicar e dedico o Abelharuco à Teresa Muge.
Reviravolta é dedicado ao Fausto porque a sonoridade desta canção
nos pareceu a melhor dedicatória que lhe podíamos fazer. Que Venha o Sol, contra todas as Pandemias; A Vida das Guerras, contra todas elas.... Cantar de Guardador, letra de José
Afonso que eu musiquei é dedicada ao Armando
Carvalheda. Enfim... São muitas dedicatórias, são muitas emoções....
Como
foi o processo de colaboração com outros músicos e convidados no álbum? Alguma
colaboração se destacou particularmente?
Zeca
Medeiros,
Tito Paris, Maria Alice, Tété e Sara Alhinho, as vozes de José M. David, Carlos Alberto Moniz e Rui
Vaz em todos os coros. Enfim só posso destacar todos por igual e pelos
mesmos bons motivos...
O
álbum mistura géneros e influências, como a morna
cabo-verdiana e o folk português. Como consegues equilibrar essas
sonoridades com a música tradicional portuguesa?
As duas canções que fiz dedicadas
a Cabo Verde, Ciz’é, Ciz’É e Àga Di Mar, são o resultado da minha
presença constante em Cabo Verde nos últimos 26 anos. Compus música e letra de
forma natural dedicadas, uma a Cesária
Évora, os amigos tratavam-na por CIZE, a Cize ´É, digo eu, e a Àga Di Mar dedicada à Morna Património Imaterial Cultural da
Humanidade, embora a tenha feito aquando da candidatura, em 2017. Quem
trabalha a cultura musical de um país, neste caso Portugal, como eu sempre
tenho trabalhado, quer com os instrumentos tradicionais como com a voz e o
canto, mistura facilmente as raízes e influências de forma natural.
Ainda
assim, podem ouvir-se, lá mais para o final do álbum, algumas sonoridades mais
obscuras e até psicadélicas. De que forma cozinhaste estas fusões?
Mal de quem fica fechado em si
mesmo e nas coisas que ouve, fechando-se ao mundo que pode e muitas vezes
enriquece a cultura dos países. Isso acontece sempre porque os músicos, os
compositores não têm medo de arriscar e fazem-no com a consciência de que poderão
ou não resultar esses cruzamentos e as similitudes de outras culturas. Eu sei
que é um risco, mas são os músicos, os compositores, os poetas, que correm
sempre esses riscos, porque a cultura não é imutável ao tempo, nem nós podemos
sê-lo.
Ao
longo da tua carreira, tens-te dedicado à preservação e reinvenção da música
tradicional portuguesa. O que te motiva a explorar e valorizar este património?
Não o faço pela preocupação de
cuidar da memória, da cultura porque é assim ou assado, não, eu gosto muitos
dos instrumentos que toco, o meu instrumento é a viola braguesa, embora toque
cavaquinhos, violão, bandolim, campaniça etc. Mas toco-os porque gosto da sua
sonoridade, não pela preocupação e preservação. Eu comovo-me mesmo com uma bela
moda de cante alentejano; um canto ao
adufe das Beiras; um coral de vozes femininas de Manhouce.... É uma questão de
gosto e não de preocupação pela memória coletiva e tal...
De que forma é que a etnomusicologia influencia o teu trabalho
como compositor e intérprete?
Sinceramente os
meus 24 discos em nome pessoal (são centenas em participações, e outros
trabalhos coletivos...) dão uma bela ideia do que pode ser esse percurso. Tal
como neste momento e com o projeto Navegante
não estou a pensar voltar às raízes, porque penso que o trabalho que eu podia
fazer já o fiz... Estes discos são os meus caminhos, bem ou mal trilhados são
o meu percurso...
Achas que a música tradicional portuguesa continua a ter
relevância para as novas gerações? O que pode ser feito para aumentar essa
conexão?
Já se está a
fazer um trabalho diferente, existem jovens compositores, cantores, cantoras
que já estão a recriar de forma diferente aquilo que nós criámos desde os anos
80... A conexão existe, o trabalho de muitos jovens músicos pode não chegar ao
grande publico, que está desperto para outras músicas, outros conceitos de
imediatismo, a música ligeira por exemplo, mas há uma geração nova que recria e
constrói interessantíssimos caminhos...
Com quase 30 anos de carreira com o grupo Navegante, que
momentos considera mais marcantes?
Conseguir chegar
a um ponto em que temos 20 discos, um livro de capa dura, com disco duplo,
comemorativo dos 25 Anos, um DVD muito bem conseguido, gravado em 2011, Cantares do Povo Português... enfim, não
destaco o momento mais marcante porque todos eles são marcantes para se
conseguir o percurso a que se chega...
Quais são os maiores desafios de manter viva a música
tradicional num mundo cada vez mais dominado por tendências globais?
Quanto mais
preparados estivermos para ouvir a música que se faz em Portugal, quando mais
dela gostarmos, mais facilmente gostamos das outras culturas, da cultura dos
outros países, porque é enraizados que estaremos mais preparados para ouvir os
outros e não o contrário.
O concerto no Centro Cultural Olga Cadaval foi uma celebração
especial que contou com novos músicos e arranjos. Como foi essa renovação da
formação para o projeto atual nessa noite tão especial?
Bom na verdade
foi uma loucura, porque nunca tinha apresentado integralmente um disco apenas
15 dias depois de ter saído a público e colocar 65 pessoas em palco, um
quarteto de cordas, dois grupos corais alentejanos, etc., exigiu guião e um
concerto que começou a ser preparado e ensaiado 3 meses antes. Quem esteve no
CC Olga Cadaval gostou muito e quem somo nós para duvidar daquilo que queremos
tanto ouvir...
Como imaginas a continuidade da tua carreira? Já há planos ou
ideias para novos projetos?
Sinceramente, em
Portugal falarmos de uma carreira quando nem sempre temos editoras (neste caso
tenho a IndieMusic, que são
realmente uma pedrada no charco e estão a fazer um trabalho notável, tenho que
o dizer bem alto, que o Eduardo Jordão
é alguém que eu já procurava há tanto tempo...) mas nos últimos 20 anos não
tinha. Portanto a carreira em Portugal faz-se caminhando, dia a dia, disco a
disco, projeto a projeto… O ano passado saiu um disco do meu com Ricardo Fonseca e Fernando Deghi, este último do Brasil, o projeto Violas EnCantadas, dedicado às violas
tradicionais portuguesas e do Brasil; este ano saiu o 2º disco dos Quatro Ao Sul, de que sou fundador e
fazem parte Rui Vaz e José M. David (Gaiteiros de Lisboa), Pedro
Calado e Pedro Mestre, cujo 1º
saído em 2012 foi Prémio José Afonso.
Projetos de boa música vão sendo uma realidade e outros virão nos próximos
tempos...
Obrigado pela entrevista, José. Há algo mais que gostasses de
dizer aos teus fãs que te acompanham ao longo destes anos?
Ouçam a música
portuguesa que não passa nas rádios, a que não chega aos grandes palcos, a que
não passa na televisão, porque são a maior parte das vezes quem faz o trabalho
de risco que tanto engrandece a música portuguesa em Portugal e no mundo. Um
grande abraço a todos pela oportunidade desta entrevista. Um abraço, Pedro
Carvalho.
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