A arte tem a capacidade
única de unir, transcender barreiras e dar voz àqueles que muitas vezes não são
ouvidos. No caso das pessoas com deficiência, a música pode ser mais do que
expressão artística: é uma ferramenta poderosa de inclusão. Projetos como o
Ligados às Máquinas, da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra,
exemplificam como a tecnologia, aliada à criatividade, pode derrubar limitações
e permitir a participação ativa na criação musical. Nesta entrevista, com o
musicoterapeuta Paulo Jacob, que já conhecemos da 5ª Punkada, exploramos as
motivações, desafios e conquistas de um coletivo que promove a inclusão e a
valorização das pessoas com deficiência enquanto agentes culturais.
Olá, Paulo, tudo bem? Mais
uma vez, obrigado pela disponibilidade. Para começar, podes apresentar este
projeto Ligados às Máquinas?
Bom dia. O coletivo Ligados às
Máquinas é um projeto musical da Associação de Paralisia Cerebral de
Coimbra que faz música de uma forma bastante peculiar: através do recurso a
tecnologia e amostras musicais.
O que te inspirou a
criar este projeto e como foi o processo inicial de conceção da orquestra?
O projeto nasceu da
preocupação/necessidade em criar respostas musicais eficazes para pessoas com
alterações neuromotoras graves. Em 2007 comecei a perceber que a tecnologia
poderia ser um aliado funcional para permitir a participação destas
pessoas. Trabalhei com o Serviço
Educativo da Casa da Música durante alguns anos e, ao longo desse período,
lidei com gente genial que integrava a tecnologia na composição ou performance
musical. O que vi, levou-me a refletir sobre o papel que a tecnologia pode
ter, como recurso facilitador, na intervenção com pessoas com alterações
neuromotoras graves, com especial atenção e enfoque nos casos de patologias
neurodegenerativas. Criei, então, na A.P.C.C. uma atividade especializada que
contemplava a concretização de projetos musicais personalizados, dirigido a um
grupo de 25 utentes e facilitada através dos recursos tecnológicos (software
e hardware). A resposta dos utentes ultrapassou as expetativas e
criou-se, assim, a base para o desenvolvimento do “bichinho musical”.
Por que decidiste
trabalhar com ferramentas como o Makey Makey para este projeto?
O Makey Makey foi a peça-chave no
aparecimento deste projeto. Quando vi, pela primeira vez, o filme promocional
do hardware, tive imediatamente a noção de que poderia constituir uma
espécie de “orquestra” de amostras musicais. A mais-valia do hardware
residia, essencialmente, na possibilidade de poder criar, através de circuitos
elétricos fechados, controladores personalizados para cada músico. Essa foi a
principal razão pela qual decidimos adotar este recurso.
Quais foram os
principais desafios no início do projeto, tanto em termos técnicos quanto
humanos?
Os principais desafios iniciais foram de
diferentes âmbitos… em primeiro lugar, conseguir juntar tanta gente num espaço
(e ao mesmo tempo); em segundo lugar: a operacionalização do sistema de
controlos individualizados… cada indivíduo foi avaliado na sua componente
funcional motora com o objetivo de se criar um controlador adaptado que
permitisse, de forma confortável, ativar um circuito elétrico de baixa
voltagem. Após a definição das adaptações individuais, outro dos grandes
desafios foi o processo de amostragem musical, que nos “obrigou” a ter de ouvir
todo o material musical (cerca de 150 músicas) que os elementos do grupo
traziam para as sessões.
Como é definido o papel
de cada músico dentro da orquestra e como se organiza a interação entre eles?
O processo de participação nos Ligados às Máquinas
é um processo individualizado, mas partilhado e colaborativo. Toda a gente
participa na tomada de decisões (desde a seleção de amostras até à definição
das estruturas musicais). Para além das questões que têm que ver com a
participação performativa/física, há também uma dimensão que não podemos
descurar: a da construção musical, o debate de ideias, a reflexão e a procura
de soluções para desafios. Cada
indivíduo é uma “peça” essencial na constituição do todo.
Poderias explicar de que forma as adaptações de hardware e software são personalizadas para os músicos do grupo?
Como
respondi anteriormente, cada indivíduo foi avaliado na sua componente funcional
motora com o objetivo de se criar um controlador adaptado que permitisse, de
forma confortável, ativar um circuito elétrico de baixa voltagem. Alguns
indivíduos têm apenas movimentos de cabeça, outros utilizam os lábios, outros o
movimento dos dedos… a ideia passa por permitir que estes pequenos movimentos
se transformem no motor da participação no seio dos Ligados. As adaptações
funcionam mais ao nível do hardware.
Como funciona o processo colaborativo com músicos e compositores
convidados?
Para o
disco Amor Dimensional, o processo de colaboração com os nossos
convidados foi feito de uma forma muito prática, simples e facilitadora: os
“colaboradores” enviavam-nos a sua “matéria sonora” e os Ligados às Máquinas
iam “tratando” a mesma (retirando amostras). No que concerne à dimensão
composicional, não houve qualquer interferência por parte dos convidados… a
inteira responsabilidade da construção musical recaiu sobre o coletivo musical.
Qual tem sido o impacto do projeto na vida dos músicos
envolvidos, tanto artisticamente quanto pessoalmente?
O impacto na vida elementos do grupo é
significativo, dada a possibilidade que este lhes permite de participar numa
atividade criativa; de serem cada vez mais autodeterminados, de se reconhecerem
como elementos de um coletivo musical (sentimento de pertença), de serem
valorizados e validados por quem assiste aos seus espetáculos (reconhecimento
da pessoa enquanto agente cultural), de lhes dar perspetivas e objetivos de
vida. Este é um projeto que, nas palavras dos elementos que o constituem, lhes
dá um sentimento de realização e orgulho.
O álbum Amor Dimensional explora o cotidiano dos
músicos. Como foi criar essa narrativa em forma de música?
Durante algum tempo, referimo-nos aos
temas do disco Amor Dimensional através de números (uma forma coletiva
de nos organizarmos) mas, aquando da conceção/gravação do disco, começámos a
refletir sobre o que poderia transmitir a sequência de temas e, mais
especificamente, cada um deles. Chegámos à conclusão que seria interessante o
disco transmitir uma espécie de viagem simbólica no dia-a-dia de um ser humano,
através dos sons e da música. Foi um processo deveras interessante que nos
abriu as portas para uma reflexão mais aprofundada sobre o nosso registo.
Como têm sido as reações do público às
apresentações ao vivo? Houve alguma
resposta que te tenha marcado particularmente a ti ou ao grupo?
As
reações do público têm sido muito positivas e entusiásticas (embora ainda não
tenhamos feito muitas apresentações de promoção do disco). Lembro-me uma
situação fantástica de interação no festival Nascentes entre o público e
o coletivo, onde foram criadas situações excecionais de participação da
plateia: a Omnichord distribuiu cerca de 70 “pássaros de água” que foram
“ativados”, ao sinal do coletivo, no final do tema Amanhecer. Que bela
recordação!
Existem planos para expandir o projeto para outros públicos ou
regiões?
Não, não
pensamos expandir o projeto dessa forma, pois acreditamos que a nossa música é
para TODA A GENTE. Chegar a outros territórios e a outras regiões é uma demanda
que… não depende, exclusivamente de nós.
Que tipo de apoio ou parcerias seriam mais úteis para o futuro
do projeto?
Mais
parcerias com entidades culturais de relevo poderiam ajudar a desenvolver o
projeto no campo da evolução musical. Num outro âmbito, também mais apoios
financeiros ajudariam a desenvolver mais recursos e condições de melhoria para
o grupo.
Depois de teres trabalhado com os 5ª Punkada e agora com estes
Ligados à Máquinas, que outras ideias tens em vista poder vir levar a efeito?
Bem, eu
ainda trabalho com o grupo 5ª Punkada… estou atualmente a promover o
projeto Ligados às Máquinas por uma questão de momentum e,
obviamente, porque faz todo o sentido. Para um futuro muito próximo, haverá
novidades e, estas, irão certamente envolver outras instituições, mas ainda não
posso desvendar…
Obrigado, Paulo! Queres deixar alguma mensagem?
Eu é que agradeço o convite (em nome do coletivo). Quanto a mensagens, deixo apenas o desejo de ver outras instituições a utilizar as expressões e a arte como forma de possibilitar a participação de Pessoas com Deficiência. Só poderemos ousar falar de Inclusão se nos concentrarmos num outro conceito tantas vezes esquecido e conducente à tão almejada Inclusão: o conceito da Participação.
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