Entrevista: Scarecrow

 

Num mundo musical cada vez mais saturado de fórmulas previsíveis, há bandas que se atrevem a rasgar o véu da convenção e explorar horizontes desconhecidos. Os Scarecrow são um desses raros exemplos. Oriundos de Perm, uma região envolta em misticismo e folclore negro, o grupo regressa com Scarecrow III, um álbum que ultrapassa fronteiras musicais e geográficas. Nesta conversa com Artemis, a alma criativa por trás do coletivo russo, mergulhamos nos bastidores desta fascinante fusão de ritmos tribais, melodias étnicas orientais e peso visceral do rock. Acompanhem-nos nesta viagem mágica.

 

Olá, Artemis, muito obrigado, mais uma vez, pela tua disponibilidade! O vosso terceiro álbum, Scarecrow III, é uma mistura fascinante de heavy rock, melodias étnicas orientais e ritmos tribais. Podes partilhar a visão por detrás desta fusão sónica e o que te inspirou a explorar influências tão diversas?

Olá, Pedro! A “fusão sónica” é um fenómeno completamente natural e até inevitável. A música deve mover-se, evoluir e mudar, absorvendo diferentes influências e evoluindo para algo novo. Deve enriquecer a experiência tanto dos músicos como dos ouvintes. Sei que para muitas pessoas o estilo do nosso terceiro álbum foi uma grande surpresa. Sabíamos exatamente o que se esperava de nós e decidimos conscientemente fazer as coisas de forma diferente. Na minha opinião pessoal, hoje em dia, a cena está inundada de álbuns com sonoridades idênticas e não há nada de interessante em fazer outro.

 

O processo de gravação de Scarecrow III incluiu viagens a locais como o Egito, a Tunísia e o Cazaquistão e o trabalho com o conjunto de percussão étnica Orza. Como é que estas experiências moldaram a música e as histórias do álbum?

Muitas vezes comparamos a música a uma viagem. É uma metáfora banal, mas está certíssima. Nunca ninguém regressa de uma verdadeira viagem - em vez disso, regressa sempre outra pessoa. É o mesmo com a música - ouvir muda o ouvinte para sempre e essa é a verdadeira magia. Visitámos muitos sítios enquanto trabalhávamos no terceiro álbum, desde o Norte de África até à Rússia central, e estas viagens, cheias de experiência, fizeram-nos repensar o material vezes sem conta. Partes das canções foram literalmente formadas a partir de episódios reais dessas viagens, seja visitando medinas quentes e barulhentas, observando imagens estranhas no fumo de um restaurante abafado e sujo nos arredores do velho Cairo, encontros com nómadas - beduínos, berberes ou outro povo tribal, fugindo de tempestades de areia ou de bandidos do deserto, ou observando um oceano ilimitado de estrelas no meio do silêncio do Saara.

 

Além disso, utilizaste alguns instrumentos raros e esquecidos. O que motivou essa busca e como ela se encaixa no estilo musical dos Scarecrow?

Como eu disse, a música precisa de mudar e expandir as suas fronteiras. A constância e a identidade podem ser boas para o marketing, mas são desastrosas para a arte. Por isso, a utilização de instrumentos invulgares para o género é simplesmente inevitável. Muitas frases musicais, nuances, tons e atmosferas não podem ser totalmente transmitidos pelo clássico conjunto guitarra/baixo/bateria/vocais. Instrumentos como o oud, o clarinete ou o duduk, por exemplo, têm timbres muito especiais, para não falar dos muitos, muitos tipos de percussão que utilizámos. 

 

Foi difícil misturar os dois tipos de instrumentação? Quais foram as principais dificuldades que encontraste no processo criativo e de gravação?

Os desafios existiram, sem dúvida. Para gravar percussão étnica, recorremos ao conjunto de percussão Orza - uns tipos fantásticos, procurem no Google. Sempre que chegava ao estúdio, mergulhava literalmente noutro mundo - estávamos rodeados de instrumentos de percussão de todo o mundo: darbukas, tars, taiko, krakebs, sagatas, sinos, etc. Cada um deles requer uma abordagem e uma experiência únicas. Não foi uma tarefa fácil tecer um tapete com tudo isto, que se encaixasse organicamente nos nossos arranjos de heavy rock. E foi igualmente difícil misturar tudo corretamente. É uma tarefa nada trivial. O som moderno estava literalmente a colidir com tendências arcaicas e foram precisos vários meses de mistura para os juntar.

 

Neste álbum incorporam elementos de vários géneros, desde o heavy rock ao blues e ao clássico e folk. Como é que mantêm uma identidade coesa enquanto navegam num espetro tão vasto de sons?

Não sei. Talvez a questão seja o facto de não nos esforçarmos especificamente por criar uma “identidade coerente”. Apenas fazemos música da forma que gostamos, usando o que gostamos, sem olhar a tendências de moda e fronteiras de género.

 

Como é que equilibram o peso emocional da vossa música com momentos de esperança ou luz, se é que o fazem, particularmente quando criam algo tão expansivo como Scarecrow III?

A música, de uma forma ou de outra, reflete a vida e a experiência de um músico. E a vida, por norma, consiste em contrastes - riscas pretas e brancas, altos e baixos, sucessos e fracassos. A vida é muito diferente e se fizeres música com base nessa experiência da vida real, em emoções e sentimentos reais, a música será diferente. Muito diferente, por vezes.

 

Para além da música, Scarecrow III inclui um filme de 16 minutos e a sua banda sonora. Podes falar-nos mais sobre esta componente visual e a sua relação com os temas do álbum?

Este filme é também o resultado de uma viagem. Sem dúvida que se sobrepõe muito concetualmente aos temas abordados nas canções, mas também conta a sua própria história. Se já viste o filme, deves ter reparado que não é dita uma única palavra. A música e as imagens deixam-no livre para a interpretação. No entanto, temos uma certa visão da história e, quem sabe, talvez ela cresça com o tempo. Esta foi também a nossa primeira experiência deste género. Enfrentámos desafios que nunca tínhamos enfrentado antes e posso dizer que gostámos de os resolver. Graças ao vídeo, o projeto ganhou uma nova dimensão e espero que o possamos desenvolver.

 

A colaboração com o produtor de som Samuel Turbitt da Ritual Sound para Scarecrow III garantiu uma qualidade consistente nos vossos álbuns. Como é que esta parceria evoluiu ao longo dos anos?

Tão harmoniosa e diabolicamente produtiva quanto possível. Neste momento temos uma discografia total de 6 lançamentos. Estive diretamente envolvido na mistura dos últimos 4 e foi uma das experiências mais úteis da minha vida. O Sam é um mestre no seu ofício e uma pessoa e amigo muito bom. Ensinou-me muito e continua a ensinar-me muito até hoje. Ele, tal como eu, gosta de resolver problemas não triviais, quer se trate de combinar instrumentos arcaicos com instrumentos modernos ou de criar paisagens sonoras em grande escala. É muito fácil trabalhar com ele. Após 6 lançamentos, o nosso nível de entendimento é muito elevado. Ele sabe o que eu quero e eu sei o que ele quer. Nalgumas questões nem sequer precisamos de palavras.

 

Com tudo isto dito, se tivesses de descrever a essência do Scarecrow III numa frase, qual seria?

Mudanças.

 

A trilogia de EPs (Nosferatu, Ghost e Golem) aborda temas clássicos de terror. Como é que a narrativa e a atmosfera destes projetos influenciaram a vossa abordagem a Scarecrow III?

Na verdade, esta série de EPs está relacionada com os álbuns apenas pelo facto de as canções terem sido gravadas e misturadas nas mesmas sessões. Em termos conceptuais, são coisas diferentes e não relacionadas. Pessoalmente, aprecio esta série porque não só tem uma atmosfera de qualidade, mas também conta grandes histórias cheias de ambiguidade. Permitem-nos falar de coisas complexas numa linguagem de imagens compreensíveis. Um ouvinte à procura de uma história de vampiros assustadores ou de um golem monstruoso tê-la-á, sem dúvida, mas um ouvinte à procura de um contexto mais profundo obterá matéria para reflexão.

 

O facto de terem crescido em Perm, uma região rica em misticismo e folclore negro, influenciou claramente a vossa música. Como é que estes elementos culturais e históricos se manifestam no último trabalho?

Quer queiramos quer não, está de facto presente dentro de nós e provavelmente estará sempre. Recentemente, estive a falar com um amigo meu que passou a infância em Perm e que agora vive do outro lado do mundo. Estávamos a discutir a Síndrome de Perm. A experiência mostra que, se crescemos nesta terra, nestas condições, onde quer que estejamos, atraímos como um íman manifestações estranhas, inexplicáveis e muitas vezes assustadoras da realidade. E é claro que isto se reflete na nossa música. Ouçam Eastern Nightmare ou Golem. Mesmo em projetos distantes de Scarecrow é possível encontrar este traço - lembrem-se de Forests, parte de Artemis' The Endless Journey - North, ou prestem atenção à faixa com o incrível título The Memoirs Of A Djinn Called Black Stork Mujarrad Scrawled On The Inside Of A Bottle Of Thick Red Glass, do novo álbum dos ORZA, no qual eu e o Vadim participámos como convidados. Podemos cantar sobre coisas completamente diferentes, até sobre São Francisco e cores no nosso cabelo, mas os ecos de Perm Syndrome nunca desaparecerão. Está lá no fundo.

 

Descreveram a vossa música como “uma viagem musical sem fim”. Com isso em mente, como imaginam a evolução futura do som dos Scarecrow?

Nós nunca temos um plano claro. Uma coisa é muito clara - não queremos que nenhum dos nossos álbuns seja como os anteriores. Queremos que seja uma experiência verdadeiramente única de vida e música. Portanto, quem sabe o que vai acontecer na próxima vez?

 

A vossa música encontra ouvintes em mais de 30 países, apesar de ter surgido num ambiente distante e desafiante. Como é que acham que a singularidade da vossa história original contribui para o vosso apelo em todo o mundo?

Muitas pessoas ficam surpreendidas ao saber de onde vimos e em que condições crescemos. “Pensámos que era do leste de Londres”, ”Não são da Califórnia?” - ouvimos isso muitas vezes. Não sei até que ponto as pessoas estão impressionadas com a nossa “história original”, mas uma coisa é certa, a nossa história moldou-nos. Foi sempre um ambiente desafiante e, muitas vezes, foram tempos difíceis. Mas, no final, tudo nos levou até onde estamos hoje. Talvez seja por causa dessas experiências que seguimos em frente.

 

Sabemos que deve ser muito difícil, mas haverá alguma hipótese de apresentar estas canções ao vivo?

Na verdade, já tocámos algumas destas canções ao vivo antes. Lembro-me que tocámos The Hymn, The Foe e The Turtle no festival South Stage aqui em Perm. Não muito antes disso, também tocámos Golem.

 

Obrigado, Artemis! Desejamos-te as maiores felicidades! Queres enviar alguma mensagem aos vossos fãs ou aos nossos leitores?

Com certeza! Queremos dizer um enorme obrigado aos nossos ouvintes e fãs em todos os cantos do mundo. Ao longo dos anos, têm-nos enviado e-mails e mensagens a perguntar sobre a nossa música e projetos, a escrever críticas e comentários e a apoiar-nos. Numa época de desunião geral, xenofobia e excesso, vocês continuam connosco. Isso significa muito.  E sabem, esta viagem é a nossa viagem juntos. 


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