Após
um longo interregno desde o EP Betta
Splendens, os Moloch regressam com um álbum homónimo que marca uma nova fase
na sua sonoridade e abordagem artística. Entre noise rock, punk,
psicadelismo e uma estética crua e direta, a banda assume um percurso sem
concessões, onde a fusão de estilos, a espontaneidade do registo ao vivo e a
carga literária das letras desempenham um papel crucial. Para nos falar desta
transição, do processo de gravação, das influências e dos desafios de manter um
projeto sem compromissos num panorama musical cada vez mais formatado estivemos
à conversa com o coletivo.
Olá, pessoal, tudo bem?
Obrigado pela disponibilidade. O vosso novo trabalho homónimo marca um
afastamento sonoro em relação a Betta Splendens. O que motivou essa
transição e como descreveriam esta nova identidade musical?
Obrigado, nós pelo convite. A transição foi natural. Não a
planeámos ou pensámos propriamente. O EP estava, inadvertidamente, próximo do stoner
e heavy psych, ainda que, de algum modo, já fugisse ao molde, dada a
nossa propensão para, mais do que buscar um estilo específico, fundir géneros e
ideias de que gostamos, mesmo que de universos diferentes. Nos sete anos que
separam o EP do álbum, continuámos esse caminho, pelo que o resultado denota,
acima de tudo, o tempo que passou entre lançamentos. Há elementos que se mantêm
(algum psicadelismo e linguagem melódica), mas aproximámo-nos mais de algum noise
rock e punk, ainda que, uma vez mais, não estejamos puramente dentro
de nenhuma dessas categorias. Não sabemos bem que etiqueta usar para nos
descrevermos. Estamos sempre a meio caminho entre qualquer coisa.
É por isso que a
introdução se chama Au Revoir, Betta Splendens?
Na verdade, sim. É um adeus simbólico ao EP e àquilo que
poderia ter sido o caminho mais óbvio para a banda e para um primeiro álbum.
As letras em português,
referências literárias e influências situacionistas dão um toque distintivo ao
álbum. Como se deu a escolha desses elementos e qual o impacto que pretendem
causar no ouvinte?
Escrever em português era um assunto falado desde o início. O
João, no entanto, não se sentia capaz de fazê-lo no contexto de letras (por
sentir que soariam mal). Uma vez mais, os anos passados trouxeram mudanças e
amadurecimento, e começou a parecer-lhe que escrever unicamente em inglês era
uma afetação vinda do hábito (e preconceito) de achar que distorção nas
guitarras só funcionava desse modo. E a bem da verdade, tem-se notado um
regresso ao português no universo musical, nos últimos anos — não estamos propriamente
a desbravar território virgem. Dito isto, não achamos que tenha de ser uma
obrigação, claro. É somente uma escolha nossa. Há projetos portugueses que
cantam em inglês e não tem mal nenhum. No nosso caso, deixámos de encontrar
motivo para o fazer e apercebemo-nos de motivos para não o fazer. As
referências literárias e teor, de algum modo, politizado já surgiam no EP. Acho
que espelha também as pessoas que existem por trás da música, aquilo que as
incomoda ou fascina, as conversas que têm, as conclusões a que chegam. Se
musicalmente é algo que fazemos, é por demais natural que aconteça também
naquilo que dizemos. E, bem, alegra-nos ser a única banda (que tenhamos
conhecimento) que meteu o Vítor Silva Tavares a dar o mote para uns sete
minutos de punkalhada.
Ainda assim, N. E. S. traz letras
em inglês. O que pretenderam explorar com esta opção? Ponderam voltar ao inglês
em futuras situações?
A letra da N.E.S. é uma colagem de várias passagens de
uma zine chamada Spectacular Times, de Larry Law. Optámos por
usar o texto no original, uma vez que a cadência da métrica encaixava na
criação de alguns motes que queríamos que existissem ao longo da música. Além
do mais, há alguma ironia em usar a língua do grande mercado musical (e, mais
do que isso, no grande mercado rockstar) num tema que se foca exatamente
na ideia de viver sem escapatória nesse jogo mercantil, nessa prisão do símbolo
e do espetáculo. Acima de tudo, o português não é uma obrigação, como referimos
— é uma escolha para as letras originais. A Nós, Nada, por exemplo, usa
um poema de Begoña Paz em galego. É provável que recorramos a outras
línguas, inglês incluído, em músicas futuras. Depende tudo daquilo que a música
peça.
Essas narrativas e
declamações surgem recorrentemente ao longo do disco, cruzando poesia e música.
De que forma contribuem para a atmosfera e narrativa global de Moloch?
Gostamos do cruzamento de disciplinas e universos não
necessariamente ligados. Criam-se diálogos. Manter essa conversa parece-nos
importante.
O álbum foi gravado em take direto,
procurando capturar a energia dos vossos concertos. Consideram que este método
traduz fielmente a essência da banda?
No EP, seguimos o caminho mais tradicional e gravámos por
faixas. Não nos podemos queixar: soa bem; ainda assim, havia algo que parecia
estar em falta. Assim, no álbum, optámos por experimentar o take direto
(deixando segundas guitarras para pós-produção, assim como voz e synths,
estes por constrangimentos técnicos; idealmente, havendo um próximo, tentaremos
fazer em simultâneo) por nos parecer, sem dúvida, a melhor forma de captar
aquilo que são as nossas músicas. Temos vários momentos sem marcações e há uma
espécie de energia nervosa que passa melhor quando tocamos ao mesmo tempo. Do
mesmo modo, gostamos da ideia de poderem existir imperfeições ou escolhas no
momento. Há uma certa humanidade nisso que, para nós, dá uma dimensão extra à
música. Os concertos acabam sempre por ser mais caóticos, na verdade —
sentimo-nos mais despreocupados do que em estúdio; o André [Isidro], que nos
gravou, percebeu, no entanto, o que queríamos e o resultado está muito próximo
daquilo que seria o ideal (o ideal é bastante impraticável, uma vez que não há
orçamento ou vida para meses em estúdio).
Com a opção tomada,
quais foram os maiores desafios durante a gravação e produção do álbum,
especialmente ao equilibrar melodia e ruído, caos e silêncio?
Acima de tudo, o grande desafio foi manter a tal
despreocupação que sentimos em palco, a qual transparece no som — as explosões,
a energia. Há uma certa pressão em «acertar», quando se grava, o que, por
vezes, suaviza um pouco aquilo que efetivamente se queria ou os riscos que se
poderiam tomar. No entanto, como se referiu, o André apanhou logo o que
pretendíamos, pelo que houve todo e espaço para o caos e, inclusivamente, coisas
«erradas», as quais se tornaram nestes anos parte do nosso som. Além do mais, teve
toda a paciência para os intermináveis detalhes da mistura. Desculpa, André.
Para a próxima é provavelmente igual.
Este trabalho apresenta
uma intrigante fusão de vários géneros, como já referiste, do punk ao grunge,
garage e heavy psych. Foi fácil encontrar esse equilíbrio para
que essa diversidade soe coesa?
Essa fusão esteve sempre presente na maneira como compomos;
se sentimos que a música precisa de algo, recorremos ao catálogo de gostos
pessoais e, a determinada altura, surge a resposta. Há um certo universo
melódico em que navegamos inconscientemente — é provável que surja aí essa
coesão; ou talvez no facto de que as músicas não costumem ser em linha reta,
mas que vão, de algum modo, seguindo uma narrativa interna tendencialmente
ligada a tensão/libertação. Não sabemos. Na volta, é um acidente feliz.
O tema Radio inclui minutos
de silêncio antes de um regresso em registo acústico. O que vos levou a essa
decisão artística e como esperam que o público a interprete?
Como já temos uma certa idade, lembramo-nos saudosamente das
faixas escondidas que, a determinada altura, faziam parte de muitos álbuns.
Pareceu-nos bem termos uma também (já o EP continha uma); e, mais importante,
essa faixa escondida é uma prenda futura para o filho do João (o bebé que se
ouve guinchar durante a música). A escolha de surgir após a Rádio, no
entanto, tem um motivo: a Rádio termina com as frases o futuro que
era brilhante/está bem/está certo, num tom derrotado, seguindo-se depois um
momento em que se ouve a Summertime em modo canção de embalar (hush,
little baby/don't you cry). Surgir então o registo acústico — e feliz —,
sendo necessário uma espera para lá chegar, parece-nos simbolicamente
apropriado (e falando nos tais diálogos, pode ser ainda uma outra
interpretação, mais positiva, das palavras que se ouvem antes da Nervos:
Eu sei que chove muita merda lá fora, muita; mas não quero que caia aqui,
aqui dentro deste espaço, um só pingo de merda. Aqui não.). É uma espécie
de momento súbito de esperança depois de um álbum essencialmente
desesperançado.
A vossa carreira já tem
cerca de dez anos. Porque só agora o lançamento de um longa-duração? Que
significado tem para vocês este lançamento? Pode ser visto como um marco ou um
ponto de partida para o futuro?
A palavra «carreira» é bastante generosa, dado o nosso
percurso e a nossa apetência para tal. A ideia era termos lançado um álbum há
uns anos. Lançámos o EP em 2017, o ritmo de concertos estava a acelerar, mas a
pandemia estragou os planos. Por outro lado, sentíamos há algum tempo que a
banda precisava de algo (éramos um trio, na altura). Acabámos por decidir que
era preciso mais um elemento e, entre a entrada do Tiago, ajustarem-se as
músicas antigas e comporem-se músicas novas, o tempo passou. O João, a
determinada altura, juntou-se aos Dead Club durante dois anos, o que também
lhe retirou alguma disponibilidade. E, claro, a preguiça. Ensaiar é bom, mas
ficar na esplanada também. Este álbum, assim, é uma espécie de saldar de
contas: fechar músicas que já tocávamos ao vivo há uns anos, ter o objeto
físico connosco. Não sei se o consideraríamos ponto de partida, pois isso
pressupõe um objetivo a alcançar. O único objetivo concreto que tínhamos foi
alcançado um ano após a criação da banda (tocar no Reverence); a partir
daí, felizmente que nunca sofremos de grande ânsia de ser o que seja ou
conseguir o que seja. Nunca achámos que viríamos a ser super bem-sucedidos, o
que, na verdade, tem sido uma coisa muito boa enquanto banda. Não há discussões
e amargamos pouco com a «estrada para o sucesso». Gostamos, acima de tudo, de
fazer músicas que nos deem gozo e dar concertos. Dito isto, não dizíamos que
não a uma noitada no Coliseu.
Já que se fala na
década de existência, como veem a evolução dos Moloch enquanto banda, tanto em
termos musicais quanto de posicionamento artístico?
Diríamos que o caminho é experimentar cada vez mais e perder
certos pudores. Ir esticando a nossa corda. Arriscar mais. Tentar qualquer
coisa acima das nossas capacidades. É o único caminho que parece ter interesse
nisto de se estar num projeto de natureza ou vontade artística. Quanto a
posicionamento, é talvez mais complicado dar uma resposta geral, pois cada um
terá as suas próprias fantasias (ser uma banda de culto!; ser multimilionários,
mas sem cedências à indústria!; ser amigo dos Melvins!), mas talvez seja
algo na linha de manter o projeto longe de pressões comerciais ou de aceitação
(pressões essas inclusivamente criadas por nós próprios). Somos praticamente
invisíveis: não temos fãs à espera, nem perspetivas de sucesso; e nada disto é
necessariamente mau: não temos obrigações para com ninguém ou o que seja a
perder. Esse espaço de liberdade, especialmente num tempo tão miserável como
este em que vivemos, é talvez a coisa mais valiosa que se possa querer. Um
sítio onde não nos chateiem os cornos com compromissos e obrigações e metas a
atingir; um sítio sem a pressa de ser o que seja; um sítio onde podes
simplesmente estar. Em boa verdade, estares num projeto como se estava no
Estádio, no Bairro Alto.
Quais são os próximos
passos para os Moloch, agora que o álbum foi lançado? Podemos esperar atuações
ao vivo ou novos projetos em breve?
Para já, estamos a marcar concertos para este ano, para dar
estrada às músicas. Temos também umas ideias que gostávamos de experimentar,
mas ainda está tudo em fase de «fixe mesmo era», por isso, a ver. Por outro
lado, já começámos a falar de compor para um novo álbum. Conhecendo-nos,
falamos em 2035.
Obrigado por este
momento, pessoal. Querem deixar alguma mensagem final?
Obrigado, nós, pela entrevista. Apareçam dia 15 de fevereiro
na Cooperativa Mula, no Barreiro. Vamos estar lá com os Linchpin.
A noite adivinha-se boa.
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