Entrevista: A Constant Storm

 

Depois de quase três anos a residir em Hamburgo, Daniel Laureano continua a dar provas de versatilidade criativa através do seu projeto A Constant Storm. Sempre fiel a uma identidade em permanente mutação, o músico português regressa agora com Halls Of Alabaster, um álbum que cruza folk, rock progressivo e uma forte componente conceptual inspirada na pirataria e no espírito de exploração. Entre experiências pessoais de mudança, crescimento artístico e novas colaborações internacionais, este registo marca mais uma etapa decisiva no percurso singular de A Constant Storm. Foi sobre este novo capítulo, sobre a sua vivência fora de Portugal e sobre os planos futuros que conversámos com o mentor deste projeto.

 

Olá, Daniel, tudo bem? Obrigado pela disponibilidade. Como tem decorrido a tua nova experiência por terras alemãs?

Olá, Pedro, muito obrigado pelo interesse! É um prazer falar contigo e estou muito entusiasmado para responder às tuas perguntas. A experiência na Alemanha está a correr muito bem, como de resto tem sido o caso desde o início, há já quase 3 anos. Calho de estar a responder a esta entrevista em Portugal, já na reta final das minhas férias de verão, mas dentro de um par de dias já estarei em terras hanseáticas de novo.

 

O novo álbum do teu projeto A Constant Storm, Halls Of Alabaster foi recentemente lançado. Poderias partilhar connosco o momento exato em que este álbum começou a tomar forma no teu imaginário criativo?

Uma das constantes ao longo dos processos criativos de todos os discos deste projeto – e do álbum de Crianças do Labirinto também -, é o facto da primeira coisa que me vem à cabeça serem sempre os títulos, sejam eles das músicas como do próprio álbum, e este nasceu muito antes do momento em que acabou por ser gravado e até composto. Juntamente com o título, bem como algumas linhas conceptuais mais ou menos fortes – que seguramente discutiremos em maior detalhe mais à frente –, houve dois pontapés de saída para aquilo que seria o disco, nomeadamente a composição das melodias principais da Alabaster e depois, um pouco mais tarde, praticamente a totalidade da The Ballad Of Captain Flint. Estes dois temas acabaram por dar o mote para tudo o resto, nesta fase sobretudo a nível musical.

 

Mas ainda teve génese em Portugal ou já foi todo delineado em Hamburgo?

Estes dois momentos anteriormente mencionados foram, de facto, ainda antes da minha partida para Hamburgo, que ocorreu em dezembro de 2022 – e um deles bem antes, nomeadamente as tais melodias principais para aquilo que acabou por se tornar a música Alabaster: essas foram compostas por volta de abril de 2021, quando ainda estava a gravar o ANT. Foi um daqueles dias em que estava simplesmente a praticar na guitarra e enquanto brincava com uns efeitos de delay, a melodia principal surgiu e pareceu-me instantaneamente algo merecedor de ser registado. Esta melodia foi aquilo que me colocou o alabastro na cabeça, uma vez que soava muito brilhante e tinha uma aura quase régia, o que me fez instantaneamente pensar em longos salões deste material precioso. A The Ballad Of Captain Flint surgiu já mais de um ano e meio depois, quando num dia em agosto de 2022, poucas semanas antes do lançamento do supra-mencionado ANT, eu decidi compor uma canção inspirada pela personagem principal da série Black Sails, ela própria uma prequela do clássico romance Treasure Island, do lendário escritor Robert Louis Stevenson. Nesta altura, diga-se, as preparações para a mudança para a Alemanha já estavam a rolar.

 

Já que falamos disso, o que te motivou a mudar de armas e bagagens para a Alemanha? O que encontraste aí que não encontrarias em Portugal?

A resposta é a esperada: oportunidades de trabalho. Ao contrário de outros casos, em que vemos pessoas a sair de Portugal por não conseguirem trabalhar na sua área ou receber salários adequados, eu até estava numa posição tranquila: trabalhava na área audiovisual, na qual me formei, e tinha um salário que, à realidade portuguesa, era ok, o que me dava algum conforto. No entanto, e sobretudo desde a altura do Covid, comecei a ter um desejo cada vez maior de explorar outros cenários e de ir para um sítio onde não só se ganha melhor, mas também as oportunidades de progressão na carreira existem em muito maior número. Isto aliado ao facto de a minha mulher também ter esse interesse – sendo que o caso dela ainda era mais extremo do que o meu, já que a arquitetura em Portugal é, infelizmente, muito desvalorizada. Resumindo, decidimos ambos sair de Portugal, um país que amamos e sempre amaremos, em busca de novas experiências e oportunidades, quantificáveis em termos monetários, mas não só, senão também – e talvez até sobretudo – buscando tornar-nos pessoas mais completas, com conhecimento de outras realidades.

 

Sendo este o sucessor de ANT, de que forma sentes que representa a evolução do projeto A Constant Storm?

Como sabem, A Constant Storm é uma entidade em permanente mutação, razão pela qual cada trabalho acaba por soar diferente do anterior – por vezes de maneiras mais drásticas, como na transição do Storm Alive para o Lava Empire, por exemplo, e por vezes de um modo um pouco mais gradual. E é dessa maneira que vejo o Halls Of Alabaster. Não estou a sugerir que o Halls seja muito parecido com o ANT, de resto penso que qualquer pessoa que ouça os dois consegue reconhecer que são “bestas” muito distintas, pois onde o ANT está claramente virado para sonoridades mais escuras, com o rock gótico a assumir papel de destaque, o Halls Of Alabaster vira muito mais para o folk rock ou até folk contemporâneo, e a sua atmosfera geral é mais exploratória e luminosa (nesse aspeto até tem mais que ver com o Lava Empire, pelo menos espiritualmente). No entanto, há aspetos comuns a ambos os trabalhos, como por exemplo o rock progressivo, que serviu de “cama” para ambos – ainda que no Halls Of Alabaster esteja muito mais na frente do que no ANT –, ou a noção de progressão narrativa que acaba por estar presente em ambos, sendo que, ao passo que o ANT conta uma história operática do princípio ao fim, a narrativa do Halls é muito mais solta e afeta a cada música em particular, tendo elas todas um fio condutor comum. Chegando ao fim da pergunta, apercebo-me de que na verdade o Halls Of Alabaster acaba por ter mais semelhanças com o Lava Empire a nível estrutural ou, como dito antes, espiritual, sendo – aí sim –, ainda mais diferente em termos sónicos.

 

A descrição no Bandcamp menciona “uma jornada de retorno com uma apreciação renovada”. Em que medida essa metáfora se reflete no caminho pessoal e artístico que tens feito desde que te mudaste do Porto para Hamburgo?

Trata-se de uma ligação muito direta: a mudança do Porto para Hamburgo, após 27 anos a viver na minha cidade natal, obrigou-me a lidar com um turbilhão de emoções muito intensas e a passar por uma fase que foi muito exigente, tanto psicológica como fisicamente. Não tendo sido fácil, também foi muito enriquecedor e hoje sinto, felizmente, que não teria feito nada de outra maneira. Tudo aquilo que ganhei a nível pessoal acaba por ser, naturalmente, também refletido na música e na arte que faço, e o Halls Of Alabaster acaba por ser o expoente máximo da representação de tudo o que este grande turbilhão foi. Para mim é claro que não conseguiria ter feito este álbum, tal como ele é, sem esta grande experiência.

 

Os teus colaboradores para este novo álbum são Jan-Phillip Meyer na bateria e Philipp Teichert na orquestração e produção. Como foi trabalhar com esta equipa criativa, e que dinâmicas se estabelecem no estúdio?

Curiosamente, soube do nome do Philipp no final de 2023, numa altura em que estava a tentar recrutar pessoas para a equipa do meu trabalho atual, um museu de arte digital. Nessa altura, acabei por considerar que o perfil dele não cabia naquilo que procurávamos, mas mantive o contacto dele nos meus documentos, uma vez que notei que ele era produtor musical e tinha um estúdio. Posteriormente, já em 2024 e com o Halls Of Alabaster totalmente composto e pronto a gravar, acabei por ligar-lhe e propor-lhe a colaboração. Ele deu-me as suas condições, encontrámo-nos pessoalmente e reparámos que havia ali uma sintonia muito grande em relação às nossas visões e acabámos por decidir colaborar, o que foi uma mais-valia gigante para o disco: trabalhar com o Philipp foi um prazer, pela sua abertura e afabilidade, e sobretudo pelo seu talento como produtor, uma vez que a sua expertise e dedicação elevou o disco a outros patamares. Quem também elevou o disco a um patamar que seria totalmente inalcançável para mim foi o Jan-Phillip, que foi uma sugestão do Philipp, uma vez que os dois já se conheciam dos seus anos a trabalhar numa cidade chamada Lüneburg, que fica a cerca de 40 minutos de Hamburg. O Jan é um baterista profissional polaco-alemão, que costuma tocar sobretudo com orquestras e produções teatrais, por isso o desafio de participar como baterista de sessão num álbum de rock foi algo pouco normal para ele, mas ele adorou o desafio e mostrou-se sempre recetivo a todas as ideias que lhe atirava. E aqui quero sublinhar que foram mesmo *todas* as ideias, já que houve coisas que eu tinha composto na bateria a pensar que teriam de ser simplificadas, mas a verdade é que ele chegou ao estúdio e tocou tudo nota por nota, a um nível que me deixou de boca aberta.

 

Musicalmente, é notória a riqueza sonora, incluindo elementos acústicos, percussão tribal, cordas orquestrais, vozes narrativas graves e sons da natureza. Como escolhes e equilibras estes elementos tão diversos para criar essas paisagens sonoras envolventes?

Naturalmente, todas as vozes, instrumentos e demais elementos das tapeçarias sonoras de cada disco têm obrigatoriamente de fazer sentido com o conceito do disco, sendo ele sempre a parte central. Como o Halls Of Alabaster trata primariamente de temas ligados ao crescimento pessoal através de exploração e da elevação do espírito rebelde da pirataria a algo cuja beleza se torna capaz de rivalizar com as mais belas peças de arte clássica, fazia sentido que cada “reino” explorado tivesse timbres distintos, para oferecer mais variedade a cada fase. A citação no início da Alabaster – do já referido clássico Treasure Island –, o som dos trovões e da escrita frenética durante a ode à dádiva criativa que é a Song Of Praise, ou o som do avião a levantar voo na Coming Home, entre outros, são também eles tratados como se de outros instrumentos musicais se tratassem – e pirateados com o máximo respeito por todos os seus criadores originais, o que também solidifica o tal super-tema de pirataria...

 

A temática de pirataria e exploração, com referências ao Capitão Flint, é bastante cinematográfica. Que tipo de referências (literárias, visuais, históricas) te inspiraram nesta viagem conceptual?

Além do Treasure Island, a grande referência foi a série Black Sails (2014-2017), que é ela própria uma prequela do livro original, e que tem – juntamente com o antagonista/anti-herói Long John Silver –, o Capitão James Flint como personagem principal, ele que no romance de Robert Louis Stevenson já tinha morrido há muito tempo, apesar da sua figura ser essencial para a narrativa, uma vez que ele foi aquele que enterrou o tesouro à volta do qual toda a narrativa se desenvolve. Focando-me na canção que acabei por lhe dedicar diretamente, The Ballad Of Captain Flint, a ideia foi pegar na filosofia e conflitos internos desta personagem, interpretada com mestria pelo ator Toby Stephens, e usá-lo como bússola moral para aquilo que este ideal de pirata ético deveria ser. Também senti que se encaixava no espírito do romance original a ideia de descrever uma personagem que se *assemelha* ao Capitão Flint, em vez de o retratar diretamente, apresentado-o também eu como uma presença central, sem ele ser realmente uma pessoa viva. De resto, e indo para lá desta música, inspirei-me naturalmente na panóplia de documentos históricos que representam a era dourada da pirataria, nos séculos XVII e XVIII, nos quais achei particularmente interessante a noção de que a maior parte dos homens e mulheres que participaram neste grande movimento tinham o desejo de se libertarem das amarras do seu país – no caso Inglaterra –, e de explorar novos lugares, vivendo de acordo com as suas próprias regras e não se subjugando à coroa. No meu caso, é claro que não deixei o meu país com raiva por ele, mas identifico-me muito com a noção desse desejo ardente de ser mais do que alguém que nunca aproveitou a oportunidade de partir.

 

Um dos destaques apontados tem sido a forma como os temas se conectam, criando uma narrativa contínua. Existe uma história ou enredo predefinido para cada tema, ou essa ligação surgiu de forma orgânica durante o processo de criação?

As ligações surgiram de forma orgânica durante o processo de criação, sem dúvida – isto apesar da própria ordem dos temas na tracklist ter uma razão de ser, já que trocando os temas de sítio, o feeling geral não fica tão coeso como ouvindo o disco na sua sequência pretendida. A Alabaster, como ponto inicial de exploração, abre o disco em alta, com o viajante a partir para a aventura algo inebriado com as possibilidades infinitas do que poderá vir aí, isto apesar de haver sempre alguma incerteza latente; depois, a One Day Away encontra-o num momento de fraqueza, onde o cansaço o afeta e as margens familiares da sua casa parecem já uma miragem distante. No final dessa faixa, ele apercebe-se de que tem de continuar a lutar, para poder regressar um dia, mas em glória, sabendo que não desistiu do seu caminho, o que o leva ao statement feroz e determinado que é a The Ballad Of Captain Flint. Na segunda metade do disco, a Song Of Praise mostra o viajante a fazer um pedido ao espírito da inspiração, que acede e lhe planta a ideia de mais uma obra, antes dele concretizar a mesma, de modo frenético e hiperfocado na Hymn To The Sleep Deprived – o facto destas duas músicas fluírem diretamente uma na outra, através do conector que nomeei The Spark, não é, claro está, uma coincidência –, antes da Coming Home fechar o disco com chave de ouro, sendo ela uma espécie de good ending para o sofrimento vivido durante a One Day Away.

 

Ora, precisamente, o encerramento do álbum com Coming Home é um ponto alto emocional. O que representa este tema no final da narrativa? Um descanso, uma celebração, uma reconciliação?

A Coming Home é uma canção na qual tentei capturar todos os sentimentos fortes que experienciei ao voltar ao Porto pela primeira vez desde que saí para a Alemanha, algo que aconteceu após 5 intensos meses de adaptação e sofrimento, ainda que, já na altura, com resultados muito recompensadores. É, portanto, uma canção que para mim representa o Porto, e nela acabei por me deixar influenciar sobretudo pelo lado sensorial: o cheiro do sal marinho e a sensação da areia sob os meus pés; a luz quente do sol escaldante no verão, mas também as manhãs cinzentas e enevoadas de inverno que cobrem o horizonte e transformam a costa atlântica num lugar místico, que me abraça sempre que a ela retorno. No contexto do álbum, fazendo um esforço para despersonalizar – já que a ideia primordial é que cada um possa verter neste tema as suas próprias experiências e imagens daquilo que entendem por “casa”, relacionando-se assim com ele de um modo muito mais profundo –, este é o momento de grand finale, no qual o explorador regressa ao seu porto-mãe pela primeira vez, sentindo-se em êxtase por ver a sua terra novamente, mas também mais maduro e evoluído, devido a tudo o que experienciou durante a sua jornada.

 

Ao longo dos anos, tens incorporado elementos de várias sonoridades desde o metal progressivo até influências neofolk, gótico e até black metal experimental. Como equilibras essa abertura artística com a consistência do carácter único do teu som?

Eu tenho a crença de que aquilo que cria uma identidade não tem necessariamente que estar ligado ao tipo de som que se pratica ou, se quisermos, às vozes (instrumentais ou em termos de produção, por exemplo) através das quais as composições se manifestam – a identidade está em todos os pequenos traços de personalidade que o compositor coloca em cada música; e do lado da performance, em todos os traços de canto, maneira de tocar guitarra, baixo, os distintos arranjos de teclado, etc. É nesse sentido que trabalho a cada álbum: para que a roupagem seja diferente, inovadora e arrojada, mas de modo que soe sempre inegavelmente a A Constant Storm. Explicar exatamente *como* é que isso funciona é praticamente impossível, no entanto, já que vem sobretudo do campo do instinto.

 

Depois de Halls Of Alabaster, o que podemos esperar de A Constant Storm? Há novos territórios musicais ou narrativos que pretendas explorar em futuros lançamentos?

Posso avançar em primeira mão que o próximo disco já está inteiramente composto e com as demos já registadas. Este surpreendentemente rápido processo de composição ocorreu inteiramente durante 3 dos 9 longos meses que passei em regime de trabalho parcial, devido ao atraso na abertura do museu onde trabalho – mas falarei mais acerca disso quando a altura for certa, que muito dificilmente será antes do início de 2027. Aquilo que já me sinto confortável a dizer, para criar algum suspense, é que o disco que vem aí será uma espécie de irmão-sombra do Halls Of Alabaster... Mas com características estruturais muito diferentes, claro está.

 

Irá haver oportunidade de apresentar este trabalho ao vivo?

Digo logo à partida que muito provavelmente não, já que A Constant Storm tem sido um projeto de estúdio desde o início, e sinto-me muito confortável com isso.  É claro que esta é uma pergunta natural, que acaba por surgir em cada ciclo de novo álbum, e eu não só a entendo, como também aprecio que seja feita, porque denota interesse da parte de quem escuta os discos e aprecia a música, mas, ainda assim, penso que não é de todo provável que isso venha a acontecer, por motivos financeiros e logísticos, bem como pela quantidade de trabalho árduo que toda a organização de contratos, ensaios, marcações de concertos e muito mais traria a uma única pessoa, no caso eu.

 

Obrigado, mais uma vez, Daniel! Para terminar, que mensagem gostarias de transmitir aos teus fãs e aos nossos leitores?​

Gostaria de te agradecer, Pedro, pelas ótimas perguntas e por teres dedicado tempo a ouvir o álbum, fazer a super elogiosa review que fizeste e por teres conversado comigo hoje. Gostaria também de encorajar todos os leitores a ouvirem o Halls Of Alabaster, seja no Spotify, YouTube ou qualquer outro serviço de streaming à vossa escolha - ou através dos CDs físicos, que podem ser comprados nas lojas online da A Constant Storm, onde ainda existem algumas cópias do merchandise oficial deste álbum e dos álbuns anteriores. Agradecendo novamente a toda a equipa da Via Nocturna 2000, um Ahoi a todos vós e espero ver-vos novamente numa próxima costa!

Comentários

DISCO DA SEMANA VN2000 #49/2025: For The Love Of Drama (PINN DROPP) (Oskar Records)

MÚSICA DA SEMANA VN2000 #49/2025: The Illusionist (SKULL & CROSSBONES) (Massacre Records)