Com A Aldeia, os Malignea regressam com um trabalho ousado e
conceptual, inspirado nas misteriosas epidemias de dança que assolaram a Europa
medieval. Um álbum capaz de cruzar o místico, o histórico, o sobrenatural, o
folclore e as crenças ancestrais, com a voz de Isabel Cristina a guiar o
ouvinte por entre sombras e luz. Tudo isto num registo que marca uma etapa de
maturidade e ambição criativa para os Malignea. E foi precisamente para nos
falar deste universo conceptual que voltamos a conversar com o guitarrista Luís
Possante.
Olá, Luís, tudo bem?
Obrigado, mais uma vez, pela disponibilidade! Para começarmos, podes contar
brevemente como surgiu o conceito de A Aldeia?
Olá, tudo bem? Ora essa, eu é que agradeço. Pois bem,
tudo começou a partir de um texto que eu li sobre as misteriosas epidemias de
dança que assolaram diversas cidades da Europa durante a Idade Média. Foi esse
o ponto de partida do qual surgiu a ideia da Aldeia como um álbum conceptual. A
hipótese formulada é simples: a de uma aldeia perdida algures no tempo e no
espaço onde ocorrem misteriosos e trágicos acontecimentos. É isto. Este
cenário, aparentemente redutor, revelou-se precisamente o oposto – o palco
perfeito para misturar elementos históricos, o místico, o sobrenatural e o
folclórico nesta pequena aldeia onde tudo pode acontecer e onde as
possibilidades são infinitas.
Quando olhamos para a
discografia da banda (o primeiro álbum e agora A Aldeia), que
transição artística sentes que ocorreu? O que mudou, o que se manteve?
O primeiro álbum surgiu muito depressa, motivado pela
nossa vontade de ter algo para apresentar e começarmos a dar concertos o mais
rápido possível.
Nele, todas as músicas são diferentes e abordam temáticas diferentes
resultantes de um processo de composição absolutamente livre e sem quaisquer
compromissos. Neste segundo álbum já não foi assim. Tivemos mais tempo para
pensar cuidadosamente no que queríamos fazer e, principalmente, fazer algo de
diferente do que já tínhamos feito no primeiro álbum. Daí ter surgido a ideia
de fazer um álbum conceptual, onde músicas e letras giram em torno de uma temática
central, uma história que é contada sendo cada uma das músicas que o compõem um
capítulo desta história. Foi um processo mais demorado, trabalhoso, mas mais
aliciante pela sua complexidade.
Cada álbum conceptual
exige uma narrativa ou ao menos uma coerência temática. Podes descrever como
dividiram (ou entrelaçaram) essa temática ao longo das faixas?
Existe uma narrativa, uma linha condutora, que é o que
dá estrutura a este álbum e que liga todas as músicas e faz delas um todo
único. Cada música é um capítulo desta história e tentámos que cada música e a
sua respetiva letra retratassem o sentimento das personagens à medida que a
história se desenrola. Esta perspetiva deu-nos um enorme sentido de direção e
ajudou-nos a ver claramente o que desejávamos para cada música. Tornou-se assim
bastante fácil compor e escrever, uma vez que havia como que um guião para cada
um destes capítulos desta história que é A Aldeia. Se fores a ver este
álbum, tem músicas que vão desde o mais lento e melancólico ao mais rápido e
agressivo e nada disso é por acaso, cada uma delas retrata os aspetos
psicológicos dos intervenientes de cada um desses capítulos.
E, até que ponto houve
pesquisa para construir esse ambiente de folclore, mitos locais, crenças
ancestrais, e como transformar essas ideias em música?
A Aldeia foi um álbum bastante exigente nesse aspeto e foi necessária
muita pesquisa para conseguirmos ter uma narrativa coerente e sólida. Há
elementos que são factos históricos, como é exemplo disso A Dança, que
se baseia nas epidemias de dança na Europa durante a Idade Média, outros são
lendas e folclore como é exemplo disso A Bruxa. Mas tudo isso teve que
ser incorporado numa história inventada com personagens inventadas e que se
passa numa hipotética aldeia também ela inventada. Essa foi a parte mais difícil,
mas após concretizar o esboço do que seria cada uma dessas histórias, tornou-se
muito mais fácil construir a música, uma vez que cada letra era um guião e
apontava claramente o caminho e o sentimento que cada música devia seguir.
O álbum começa com Laudes (intro) e
termina com Vésperas (outro). Essas palavras remetem a práticas
religiosas/litúrgicas. Qual é a importância da liturgia ou do sagrado no
alinhamento conceptual do álbum?
Os títulos da intro e da outro surgiram
já muito tardiamente na composição do álbum. Achámos que num álbum com tantos
elementos folclóricos e pagãos fazia falta um contraponto mais litúrgico para
dar um certo equilíbrio. Na Liturgia das Horas, segundo a tradição cristã,
Laudes é a oração do amanhecer e Vésperas a do pôr do Sol. Em termos simbólicos,
A Aldeia e tudo o que lá se passa ficam assim entre estas duas orações,
entre o nascer do dia e o pôr do Sol.
A faixa-título A Aldeia torna-se
marcante por fazer uso de vozes corais sem palavras, criando um efeito muito
simbólico e ritualístico. Como surgiu essa ideia dessa voz sem palavras?
Essa faixa nasceu como o retrato de um momento de
alegria e confraternização entre os habitantes da Aldeia, uns instantes de paz
entre todos os estranhos e terríveis acontecimentos que se vão sucedendo.
Originalmente era para ser apenas instrumental, mas apercebermo-nos de que
faltava mais qualquer coisa para que este retrato fosse mais completo. Não
queríamos que tivesse palavras, queríamos algo mais intangível que retratasse
as dinâmicas e a celebração entre homens e mulheres. Daí surgiu a ideia de um
coro.
Em alguns momentos do
álbum há uma abertura para luminosidade através do uso de guitarras acústicas e
da perda de distorção. Foi uma opção consciente de contraste para quebrar algo
do peso geral do álbum?
Sem dúvida. Há músicas que pedem um toque mais leve e
mais acústico. E isso não tem só a ver com o peso, mas também com a atmosfera
que só os instrumentos acústicos conseguem criar, a capacidade de nos remeterem
para uma dimensão mais intemporal, mais próxima da terra e dos ciclos naturais.
Neste caso, mais perto do que se poderia experimentar numa Aldeia.
O álbum conta com
diversos convidados, sendo os mais destacados os Gwydion. Como foi o processo
de incorporar esses elementos externos na “alma” do álbum?
Como disse anteriormente, a faixa A Aldeia, que
dá o nome ao álbum, inicialmente era para ser apenas instrumental, no entanto,
achámos que faltava algo que não traduzia completamente o que pretendíamos. Daí
ter surgido a ideia de uma desgarrada, algo típico de uma festa de aldeia, em
que vozes masculinas e femininas se desafiavam umas às outras. Lembrámo-nos de
convidar os Gwydion para os coros masculinos e a Carla Carreto e Cátia
Marques para a componente feminina nesse despique. De resto, e para além
dessa faixa, a Carla e a Cátia também participam de forma magistral nos coros
ao longo de todo o álbum. Temos a agradecer também ao Pedro Antunes que
brilhantemente compôs as orquestrações da intro Laudes.
E também há a sanfona
do Hugo Osga. Em que faixas aparece e qual foi o critério para a usar?
A sanfona do Hugo Osga aparece também só na
faixa A Aldeia. Prende-se mais uma vez com o nosso desejo de dar a essa
faixa um tom mais rural, mais campestre, trazer um sentimento mais próximo das
raízes da terra, dos ciclos da Natureza e das estações. Ficámos muitíssimo
agradados e agradecidos pela participação não só do Hugo Osga, mas de
todos os nossos convidados. A prestação de todos foi absolutamente fantástica e
valorizou enormemente este álbum.
Isabel Cristina volta a
ter uma prestação magnífica, muitas vezes cantando sem usar palavras. Como foi
o trabalho de voz para este álbum, especialmente nessas partes mais delicadas
ou nas mais exigentes?
Este álbum foi, sem sombra de dúvida, o álbum mais
difícil em que a Isabel já trabalhou até agora. As músicas são muito diferentes
entre elas e requerem abordagens e registos vocais diferentes, uma vez que em
cada música é como se a Isabel estivesse a dar voz e vida a uma personagem
diferente. De todo o álbum há duas faixas que se distinguem pela dificuldade a
nível vocal: A Dança, porque a música é extremamente rápida, e O Poço,
por ter passagens que ficam quase fora do alcance vocal da Isabel. Temos também
muito a agradecer ao nosso produtor, o Fernando Matias, pelo incansável
trabalho para que as vozes ficassem límpidas e cristalinas, as métricas
certíssimas e a dicção perfeita.
Na entrevista que nos
concedeste em 2023 falavas de expectativas, de identidade e de desafios da
banda. Quais dessas expectativas se mantiveram até agora, e quais foram
surpreendidas pela realidade do processo criativo?
Algo que se tem mantido uma constante é a nossa
capacidade de compor, escrever, partilhar ideias e fazer música em conjunto.
Desde o início, quando começamos com Malignea, tínhamos definido que não
nos manteríamos agarrados às mesmas fórmulas e que pretendíamos fazer sempre
coisas diferentes. Nessa perspetiva a ideia de fazermos um álbum conceptual foi
um desafio e tanto em que todos tivemos a noção de estarmos a subir a fasquia e
a aumentar o nível de dificuldade. A partir do momento em que traçamos os
primeiros esboços do que seria A Aldeia, de como seria a história e de
que imaginário desejávamos para o álbum, tivemos a certeza de que iria
funcionar. Subitamente todas as peças começaram a encaixar-se e penso que o
resultado é um excelente álbum do qual só podemos estar orgulhosos.
O que têm previsto para
levar este grandioso álbum para o palco?
Temos grandes perspetivas para este álbum que pensamos
que nos poderá abrir portas a nível internacional. Para já temos bastantes
datas confirmadas até ao fim de 2025, não só em Lisboa e no Porto, mas também
na Suécia e em Espanha. Estamos muito curiosos quanto à reação do público lá
fora à nossa Aldeia. Para 2026 pretendemos apostar mais em festivais. Estamos
prontos para levar a nossa Aldeia a todo o lado em que nos queiram receber.
Por fim, que mensagem
gostarias de deixar aos nossos leitores e aos vossos fãs, tanto os vos seguem
desde o início, como os que chegaram agora A Aldeia agora?
A mensagem que deixo é que saiam de casa e vão a
concertos, mostrem o vosso interesse, ouçam os álbuns. Sem vocês nada disto
vale a pena, são vocês que mantêm a cena viva. Quem ainda não ouviu que ouça.
Tenho a certeza de que vão gostar da nossa Aldeia. Obrigado por tudo. Um abraço
e até breve!




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