Com Para Dois Corações,
Rui Fernandes volta a afirmar-se como um dos mais inspirados embaixadores da
viola amarantina no contexto contemporâneo. Depois de surpreender com o seu
álbum de estreia, A Viola Amarantina, o músico dá agora continuidade a
esse compromisso artístico e afetivo com o instrumento, explorando novas
dimensões tímbricas e reforçando o diálogo entre tradição e modernidade. Motivos
mais que suficientes para irmos conversar com o criativo guitarrista e
compositor sobre este novo ciclo criativo.
Olá, Rui, tudo bem? Obrigado
pela disponibilidade. Para Dois Corações é o segundo capítulo de
um compromisso com a viola amarantina. Para ti, o que define este segundo capítulo? O que quiseste fazer diferente?
Diria que, em primeiro lugar, há um fio condutor que
une os dois trabalhos: a exploração dos timbres que esta viola oferece. A maior
diferença é que este segundo trabalho foi trabalhado exclusivamente para o
quarteto e parece-me haver, naturalmente, uma maturidade maior quer nas
composições quer na coesão do quarteto nesta nova sonoridade que resulta na
fusão deste instrumento que sai do seu “mundo” tradicional para se misturar com
um contrabaixo, piano e bateria.
Em que momento
percebeste que o repertório e a sonoridade que estavas a construir seriam
suficientemente fortes para sustentar um novo álbum? Isto é, quando sentiste
que estava na altura de criar este manifesto?
A minha postura é ir construindo músicas novas e com
isso continuar sempre a mostrar as inesgotáveis potencialidades desta pequena
viola. A entrega e dedicação dos outros músicos fazem o resto. É o quarteto que
sente se estamos perante composições novas que merecem ser mostradas. E é isso
que vai continuar a ser no próximo trabalho. Ou seja, cada trabalho é um meio
para se conseguir o maior bem: divulgar esta viola pelo mundo da música.
O teu trabalho anterior
permitia versões solo da viola amarantina e versões em quarteto com arranjos.
Até que ponto Para Dois Corações segue essa lógica de dualidade (solo vs
arranjo)?
Todas as músicas têm uma versão a solo. Podem não
constar no álbum, mas poderão ser vistas e ouvidas no meu canal de youtube, por exemplo. Nos concertos
essa dualidade estará sempre presente, por exemplo, uma vez que há músicas que
serão tocadas exclusivamente a solo. Depende, de facto, da alma que cada canção
tenha. Neste álbum, por exemplo,
entendeu-se que a canção Divertimento deveria ser um momento em que eu
ficaria a solo com a viola. Uma brincadeira pegada, portanto.
Os músicos que te
acompanham são o Pedro Neves (piano), Miguel Ângelo (contrabaixo) e Miguel
Sampaio (percussão). Como foi o processo de composição e arranjo colaborativo
com eles para este álbum?
O mais simples possível. Eu apresento o tema a solo e
depois cada um vai dando uma ideia aqui e acolá e, quando damos conta, a música
ganhou corpo, intensidade e a tal nova sonoridade que se vai construindo em
cada música, sempre à volta da viola amarantina.
O single Brisa do Mar Del
Plata é uma porta de entrada importante para o álbum. Podes falar-nos do
processo criativo desse tema e a ligação a Astor Piazolla?
A Astor Piazzola e o Carlos Paredes são
dois músicos que me impressionaram, quando era mais jovem (e continuam a
impressionar) pela intensidade e entrega que dão à música. A influência deles
em mim foi essa. Parece que se alheiam completamente e se fundem com o momento
musical que vivem. Eu tenho essa paixão
pela viola amarantina. A influência de Piazzola foi, portanto, inconsciente até alguém me chamar a atenção, quando em círculo fechado mostrei o que estava a construir, que os dois ou três primeiros acordes tinham o sabor de Piazzola. A
partir dessa consciência deixei que fluíssem as melodias pensando sempre em
Astor Piazzola. Ele que me perdoe este atrevimento, mas a dedicatória a ele
foi, na verdade, um agradecimento por tudo o que me fez/faz sentir quando ouço
a sua música.
Quando lançaste A Viola Amarantina,
assumiste um desafio de criar um repertório original para um instrumento com tradição,
mas pouco “canónico” no presente. Que receção encontraste no público e na
crítica e que surpresas (positivas ou negativas) ocorreram no caminho até Para
Dois Corações?
Se negativas houve, não mas fizeram chegar. Quando
comprei a viola, não tinha intenção de nada a não ser divertir-me com um novo
instrumento. Só quando apresentei o primeiro original, Fernandinha, num
evento com várias outras violas e alguém disse: “não sei se deste conta, mas
abriste uma nova via para essa viola”, é que eu pensei seriamente que poderia ir
por esse caminho. Ou seja, se alguma utilidade eu poderei ter na ajuda a
divulgar e mostrar este instrumento, pois então que seja este, uma vez que já há
bons músicos a mostrá-la na música tradicional.
Ao longo da história
dos instrumentos tradicionais, muitos ficaram com status de
“instrumento de acompanhamento” ou “de folclore”. No teu caso, já há uma
autoimposição de que a viola amarantina deve “brilhar” como instrumento
solista. Em que medida enfrentas (ou já enfrentaste) resistências nessa
transição para uma presença contemporânea?
Não enfrento porque não existem. Isto é, quando torno públicos os meus originais, assumo-me por completo dizendo: estas são as minhas propostas, este é o meu contributo, estas são as influências musicais que me definem como músico. Gostam? Fico muito feliz. Não gostam? Fico muito
feliz na mesma porque a viola me trouxe muita felicidade enquanto construí as
músicas. E para a divulgação
deste viola amarantina é este o meu contributo. Isto porque, como eu digo
sempre, esta pequena grande viola, apesar do nome, é uma viola da música do
mundo.
Achas que o panorama está a mudar com tantos projetos a surgirem com destaque dadas as violas portuguesas (Bexiga, O Gajo, Lusitanian Ghosts…)?
Completamente! As facilidades técnicas e de captação
sonora permitem aos músicos o maior foco na composição. Aos músicos que
mencionas podem-se acrescentar outros grandes nomes em todas as oito violas de
arame em Portugal. Há, pois, uma atenção e um novo fascínio pelas
potencialidades destas violas e, como estamos a falar de excecionais músicos e
excelentes executantes, é perfeitamente natural que estes instrumentos estejam
a ter a procura e a visibilidade que merecem.
Tendo este segundo
álbum como base, o que imaginas para o terceiro capítulo desse compromisso com
a viola amarantina? Há territórios musicais ou colaborações que almejes
explorar?
Experimentar esta viola amarantina e os caminhos que ela
me mostra vai ser sempre o compromisso. Digamos que há um pacto profundo entre
mim e ela. Os territórios musicais são já muitos. Quem tiver a preocupação de
ouvir os dois álbuns percebe que há influências múltiplas de várias formas
musicais. E é esta multiplicidade que me dá gozo e talvez diferenciação ao
projeto. E vai continuar a ser isso. Ou seja, se penso dedicar um álbum à
música tradicional, ou ao tango, ou ao jazz? Não penso. Vou continuar
fiel ao que me tem acontecido. Vai ser o caminho que a viola amarantina me
mostrar, o que é o que tem de resto acontecido. Quanto às colaborações, vão
aparecer naturalmente. Isso é uma certeza.
Em termos de palco, o
que tens planeado em termos de apresentação ao vivo deste álbum?
Estou a planear uma maior presença em palcos no ano de
2026, percorrer o país e talvez sair também. Naturalmente que isso não depende
de mim. Espero que que os programadores culturais estejam atentos a novas
sonoridades e que contribuam também para a divulgação destas pequenas violas
que tanto têm dado à música e tanto têm para surpreender em termos
contemporâneos
Para terminar, que
mensagem gostarias de transmitir aos nossos leitores?
Gostaria que tivessem a curiosidade de saber mais
sobre as violas de arame em Portugal. Pedia que ouvissem mais os projetos
que têm como propostas as violas de arame. Estas violas são um património tão
nosso e são talvez o que nos diferencie. As potencialidades são imensas e o bom
gosto dos projetos provam isto. São violas que fazem parte do nosso
património e são instrumentos que com a tal sonoridade única são capazes de unir o
passado e dar esperança de um grande futuro.


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