Entrevista: Cristina Maria

 

Entre a pedra e a canção existe um território raro, onde a criação artística deixa de se dividir em disciplinas e passa a afirmar-se como gesto total. É precisamente nesse espaço de cruzamento que se move Cristina Maria, artista para quem a escultura e a música nunca foram caminhos paralelos, mas sim expressões complementares de uma mesma necessidade interior. Com uma carreira construída entre a cantaria artística, a criação escultórica contemporânea e uma vivência musical que atravessa o fado, a música tradicional, a pop e outras geografias sonoras, Cristina Maria fala-nos do seu novo trabalho, Entre a Pedra e a Canção que assume, sem reservas, essa dupla identidade.

 

Olá, Cristina, obrigado pela disponibilidade. Para começar, poderias contar-nos como surgiu o teu interesse pela escultura e pela música? Em que momento da tua vida é que percebeste que essas duas artes iriam caminhar lado a lado para ti?

O interesse pela escultura, primeiramente pela Cantaria Artística, surgiu em 1994 quando ingressei na Escola de Artes e Ofícios da Batalha (Mosteiro da Batalha) e em 2005 a evolução para o trabalho criativo, contemporâneo. A música existiu desde sempre na minha vida, a partir dos 9 anos talvez, ingressei em vários festivais de música, fiz parte de banda filarmónica com o instrumento clarinete, passei pelo popular e tradicional, pop rock e a partir de 2005 comecei a inserir-me em grupos de noite de fado. Após a edição do meu segundo álbum intitulado Percursus 2010, comecei a unir as duas artes, juntando as exposições com os espetáculos e vice-versa.

 

Nos teus trabalhos anteriores, já tinhas abordado a música e a escultura. O que mudou, para ti, entre esses projetos e este novo álbum?

O que mudou, para além da atitude artística, foi o facto de alguns dos temas serem escritos e compostos por mim, o que acaba por ser um contar da minha história na primeira pessoa, ainda a envolvência deste trabalho retratar não só a escultora e cantora/fadista, assim como a abordagem musical ir ao encontro das minhas referências musicais de todo o meu percurso.

 

Percebe-se que este álbum é um autorretrato. De que forma cada canção reflete partes da tua vida e quais são os temas centrais que quiseste partilhar?

A inserção dos sons das ferramentas de trabalhar a escultura foi e é uma forma de transportar o público para o meu universo não apenas profissional, mas emocional. Enquanto crio, não são só as obras de arte que florescem, mas também a minha música e poesia em simultâneo. Depois o contar da história não é uma história de um qualquer escultor e ou cantor, mas sim a minha história. Aquilo que sinto verdadeiramente e o que sou nas duas vertentes que se fundem naturalmente. É importante para mim transmitir que a criatividade não se esgota num só tema, mas que todos nós somos inúmeras coisas ao mesmo tempo e arte e a música dá-nos esta liberdade de o comunicar desta forma descomprometida de partilha.

 

No álbum, há temas da tua autoria, mas também colaborações. Como foi a escolha dessas contribuições e de que forma se cruzam com a tua visão pessoal?

Para mim foi muito importante que os colaboradores deste trabalho tivessem uma ligação artística forte com o meu trabalho, mas também que conhecessem a fundo esta minha realidade artística e a pessoa/mulher que sou. Portanto, são autores e compositores que conheço e trabalho há muitos anos e que para eles este foi um trabalho tanto simples quanto desafiante. Mesmo que alguns deles não sejam assim tão reconhecidos no mundo da música, para mim o mais importante é a qualidade do seu trabalho e a forma genuína e generosa com que o fazem.

 

A capa do disco foi inspirada na tua escultura A Outra Face: colocaste a tua imagem numa escultura para fundir visualmente a pedra e a canção. O que te levou a essa decisão artística? Que simbolismo está por detrás dessa imagem?

A imagem da capa do disco é exatamente uma escultura esculpida e criada por mim há cerca de 4 anos, intitulada A Outra Face. Depois de 2 sessões fotográficas para o efeito percebi que não fazia sentido a imagem habitual de estúdio (por muito boa e bonita que fosse). Devo acrescentar que esta etapa foi a mais difícil de concluir, pois queria fugir do padrão e fazer jus ao que tinha no interior do álbum. Assim, foi apenas pegar na imagem da escultura e inserir o meu rosto de perfil, sem alterar nem desvirtuar a escultura. A outra face que deu lugar às duas faces que represento uma da pedra e a outra da canção sendo ela a mesma.

 

Embora o fado esteja presente no álbum, podemos considerar este o disco mais afastado do fado tradicional que já fizeste? Que outras influências musicais escolheste explorar?

Como já referi anteriormente, este álbum protagoniza as diferentes áreas da música que sempre me inspiraram musicalmente, mas também as esculturas que crio. A experiência profissional da escultura que também já me levou a outros cantos do mundo cimentou em mim estes cruzamentos culturais, de destacar a música do Brasil (pelo samba e bossa nova) e Cabo Verde (pelas mornas). A música pop, tradicional e ligeira da qual protagonizaram antes na minha vida primeiramente que o fado, também é parte importante e fundamental na sonoridade deste trabalho.

 

Em paralelo com este álbum, tens a exposição Retalhos, que recolhe obras dos teus 27 anos de carreira como escultora. Há alguma relação entre esta exposição e o teu disco?

Há sempre ligação, até porque a música é sempre quem muito me inspira na criação das minhas obras de arte. Na exposição Retalhos posso destacar a presença da escultura guitarra portuguesa (Alma Lusa), Tributo a Cesária Évora (Morna) e a guitarra clássica - tributo a Rui Veloso. Tributos estes que marcam parte de alguns géneros musicais do Entre a Pedra e a Canção.

 

Quais os teus planos para levar este espetáculo para o palco?

Não existe plano de maior ou específico que diferencie dos anteriores. Apenas a intenção clara de que cada vez mais a apresentação da Cristina Maria em palco será através destes temas originais sobre a minha obra, marcando o seu destaque e valorização entre os fados clássicos que fazem parte do meu repertório. Assim como levar algumas das minhas esculturas para os palcos reforçando cada vez mais esta mensagem "da escultora do fado" fazendo a ligação da obra com a música.

 

Depois deste álbum, tens já novas ideias para futuros projetos, quer musicais, quer escultóricos? Pretendes continuar a explorar esta fusão entre pedra e som ou tens novas direções em mente?

Presentemente o projeto principal é este. Acreditamos que o concerto Entre a Pedra e a Canção tem muito para dar, tanto a nós como ao público, merecemos materializar mais e melhor este espetáculo tão rico e singular. Claro que o plano perfeito é levar este espetáculo em conjunto com a exposição de escultura, que no próximo ano assumirá o mesmo nome do álbum. Na escultura outras coisas existem em mente como continuar a fazer esculturas de obra pública em paralelo com as exposições, mas as duas artes jamais se dissociarão uma da outra, porque se complementam e merecem o mesmo destino.

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